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O Corinthian, o Paulistano, o Manchester City, o Milan, o clube-zumbi e a SAF

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Atualizado às 07:38

O Corinthian Football Club (que deu origem, após uma fusão, ao Corinthian-Casuals) foi (ou é) um clube amador de futebol, de origem inglesa, que contribuiu para mundialização do esporte, a partir de valores éticos e morais que se perderam juntamente com a expansão, sem os devidos instrumentos de controle, do sistema globalizado futebolístico.

Os conceitos que o norteavam, aliás, nunca foram tão atuais, mesmo que empacotados, nos dias de hoje, (apenas ou sobretudo) para responder a demandas externas e mercadológicas: amor ao jogo, fair play e cavalheirismo (ou companheirismo).

O clube reuniu, na virada do século retrasado para o passado, alguns dos melhores jogadores amadores e chegou a ser considerado o melhor do planeta. Foi contra esse time que o Manchester United sofreu talvez a maior goleada de sua história: 11x3.

Sua influência atravessou o Atlântico e o atraiu ao país. Em turnês brasileiras, em especial a ocorrida em 1910, amassou todos os times que encontrou pela frente. O poder que externava incentivou 5 trabalhadores locais a fundar um clube que marcaria a história do futebol: o Sport Club Corinthians Paulista.

Dentre os times batidos (e alguns massacrados) pelo inglês naquela passagem pelo Brasil, listam-se, além de cariocas e seus combinados, o AA das Palmeiras, o São Paulo Athletic ("SPA") e o poderoso Club Athletico Paulistano ("CAP").

Os dois últimos já protagonizaram o futebol paulista. O SPA levou o tricampeonato nos anos 1902/1903/1904 - além de vários outros títulos -, e o CAP, de 1916 a 1921, levantou 5 dos 6 títulos disputados, dos quais 4 consecutivos (de 1916 a 1919), façanha jamais atingida por qualquer outro clube.

Esses são exemplos de clubes que não souberam perceber as mudanças que abalariam a forma como se entendia e se administrava o futebol, ou que optaram, com alguma consciência, pelo caminho que os levaram para as posições em que se encontram hoje.

O CAP, por exemplo, rejeitou os movimentos de profissionalização e se resignou a praticar o esporte no âmbito amador, o que ainda faz até hoje, para deleite de pequena parcela da elite paulistana que o frequenta. A rejeição correspondia, em seu tempo, à atual rejeição à SAF.

A constituição de uma SAF, como já se afirmou diversas vezes nesse espaço, não representa um fim em si - como a profissionalização não nivelou todos os times protagonistas das décadas passadas em potências futebolísticas. Com efeito, a simples passagem do modelo associativo para o de companhia, como pretenderam as Leis Zico e Pelé, não configura condição suficiente (se bem que necessária) para solucionamento das mazelas internas e externas de cada e todo clube.

A SAF consiste em um instrumento, isto sim, de viabilização de um processo transformacional, que somente se realizará se, em sua concepção, seus arquitetos considerarem, testarem e enfrentarem os seguintes aspectos: o que é o time em questão, o que se quer que ele seja, onde ele está, para onde se quer levá-lo, como se irá, com quem se irá e de que forma serão atingidos os planos fixados nos itens anteriores.

Não custa lembrar: o Manchester City, clube fundado em 1880, operou, até 2008, um time irrelevante esportiva e economicamente. Naquele ano, foi adquirido por uma entidade ligada aos Emirados Árabes Unidos, que o alçou ao topo do planeta. É possível que alguns torcedores saudosistas, sobretudo os que se aproveitavam da ineficiência interna, ainda maldigam o sucesso, a formação de um time-seleção e a exposição mundial. Mas a torcida, a sociedade local e, num plano expandido, a sociedade inglesa passaram a se beneficiar direta e indiretamente, sob diversos ângulos, do movimento, que se tornou global, com muito maior intensidade do que se verificava, antes, sob outra forma de detenção da propriedade dos ativos do clube. 

No Brasil da SAF, há quem peça para que se desconfie do investidor, mesmo que atenda pelo nome de Ronaldo Nazário, mas especialmente daquele que vier de outra terra, e mais ainda se for bilionário, por supostamente pretender extrair a riqueza local em seu proveito e, quando esgotada, esvair-se.

Esse é o discurso do cartolismo, inclusive quando se apresenta empacotado em teses ideológico-políticas, que pretende preservar a sua influência e o poder gerencial do futebol, à conta do torcedor (e do povo).

Lembro-me, nesse sentido, de ter mantido, há não muito tempo, correspondência com certo cartola, com passagem por clube e entidade de administração do futebol, que maldizia os modelos dos times europeus pela suposta fragilidade relacional entre proprietário e tradição. A lógica era (e ainda é): se um dia der prejuízo, ele abandonará o time e deixará a torcida na mão. Divergíamos, na ocasião, sobre os supostos malefícios, segundo o cartola, que o investidor do PSG causava ao time.

O argumento, na verdade, é de uma superficialidade que nem mereceria consideração, se, nos últimos meses, o mundo não tivesse assistido a duas negociações substanciais, uma na Inglaterra e outra na Itália, envolvendo a saída e a entrada de novos investidores-proprietários, que desdizem, na prática, o que o cartola pretendia afirmar como dogma.   

O Chelsea, após ter se tornado um time relevante no plano mundial em decorrência dos investimentos realizados por investidores internacionais, foi vendido, em uma situação extremada (e não desejada por seu dono), por aproximadamente 27 bilhões de reais. A movimentação no plano societário preservou a empresa futebolística e a perspectiva dos torcedores.

Da Itália também vem um exemplo interessante e importante: o Milan experimentou anos de decadência, desde a saída de Berlusconi, tendo inclusive sido objeto de negócios malsucedidos, até que um fundo de investimento em "ativos estressados", o Elliott, conseguisse, não sem percalços, organizar a estrutura interna e levar o time, neste ano, ao campeonato nacional que não alcançava desde a temporada 2010/11.

Na esteira dessa conquista, a companhia que opera o time foi vendida por valor divulgado de, em reais, aproximadamente 6,18 bilhões. O comprador é outro grupo estrangeiro, o RedBird, que já possuía investimentos no setor esportivo. Pelo que se noticia, o vendedor ainda manterá participação reduzida no Milan e elegerá membros para órgãos de administração - o que parece indicar alguma crença nas projeções futuras do time.

Em ambos os exemplos são extraídas lições convergentes, sobretudo se aplicadas ao ambiente brasileiro que, com a Lei da SAF, passou a ter uma moldura regulatória que outros países, como o inglês, não têm: os movimentos de entrada e saída de investidor, se e quando realizados no âmbito de sistemas construídos para oferecer segurança jurídica aos agentes que o integram, não são necessariamente ruins, muito pelo contrário, aos times e, consequentemente, aos torcedores. Deverão, aliás, indicar o início de novos ciclos de investimentos, inclusive na base da estrutura futebolística.  

Algo que, no âmbito do clubismo, não se realiza, apesar da insistente mania de associá-lo à preservação da cultura e dos interesses dos torcedores. Não, definitivamente não: o que se opera, na verdade, a cada troca de comando administrativo no âmbito de clubes de futebol - muitos deles transformados em clubes-zumbis -, ao cabo de mandatos eletivos, com raríssimas exceções, é a farra de gastos - e não de investimentos - que levou ao acúmulo de uma dívida da ordem de 13 bilhões de reais.