Sunderland, o futebol brasileiro, a SAF e o problema do cartolismo
quarta-feira, 4 de maio de 2022
Atualizado às 08:54
A primeira - e talvez principal - lição que se extrai da série Sunderland 'Til I Die, disponível na plataforma Netflix, consiste na revelação da importância que o time de futebol exerce em relação à população da cidade que ostenta o mesmo nome.
Localizada no nordeste da Inglaterra, Sunderland se manteve, durante décadas, de três atividades principais: mineração, indústria naval e pesca. Todas apresentaram, por distintos motivos, sinais inequívocos de decadência e deixaram rastros de desilusão e desemprego - sendo um ou o principal desses motivos, segundo a convicção local, a integração à União Europeia, o que se reflete na massiva votação favorável ao Brexit.
É nesse ambiente que se introduz o mote da série: a paixão - que não deixa de ser uma válvula de escape aos problemas sociais e existenciais - pelo time. Afirma-se, aliás, em certa passagem (que deve ser contextualizada), que o time de futebol é a coisa mais importante que restou aos habitantes locais; uma espécie de sopro de esperança por dias gloriosos que se conheceram no passado.
Antes de passar ao tema principal do presente texto - a relação das gentes com o esporte -, vale chamar atenção para o fato de que, até o ano que antecedeu o recorte cronológico adotado pela série, o Sunderland jogara 10 temporadas seguidas na Premier League, mas vinha de ser rebaixado para a "segunda divisão" inglesa, denominada Championship. Atualmente, o time disputa a League One, correspondente à terceira divisão nacional.
Nem por isso a paixão - embora eventualmente tumultuada - se arrefece (mesmo que, em momentos extremos, se transfigure em raiva).
Partindo-se, agora, do Brasil, o tema pode ser encarado sob dois ângulos.
O primeiro, relaciona-se ao papel que o futebol poderia cumprir como atividade relevante tanto econômica, como socialmente. O segundo, envolve o enfrentamento e o solucionamento da relação (quase) eterna entre o torcedor e o veículo de detenção da propriedade de sua paixão - o clube -, historicamente manipulada por uma classe intermediária: a cartolarial.
Sobre o primeiro ponto, deve-se, é óbvio, evitar comparações absolutas. Inglaterra e Brasil não se confundem, assim como as conformações históricas e econômicas de (e do) Sunderland não encontrarão paralelo fidedigno em rincões locais e os times que os representam. Mesmo diante das diferenças, um elemento se prolifera e se imiscui nas realidades não apenas de cidades dos dois países, como de milhares e milhares de outras - sem eufemismo - espalhadas pelo planeta: o futebol.
E aí se revela o pecado que se comete contra o Brasil e o brasileiro, em geral, por sucessivos governantes, que ignoram, solenemente, a importância da atividade - ignorância que é subvertida, via de regra, apenas para aproveitamento momentâneo de oportunidades egoísticas ou de posições políticas.
Ou seja: o futebol não deveria ser tratado ora como mera expressão de entretenimento e, em outros momentos, como um fardo econômico, dado o seu bilionário estoque de dívidas, que se acumula à conta do contribuinte; isto é, do trabalhador brasileiro.
Não é isso, de modo algum: sob uma forma organizacional que se aproximasse dos modelos dominantes europeus, mas olhando-se para e se apropriando da essência e das realidades locais - em uma espécie de processo antropofágico, sob o enfoque popular, e não elitista -, poder-se-ia alçá-lo ao posto de atividade nacional fundamental, promovedora de ascensão social e de desenvolvimento econômico.
O futebol, para o Brasil, não pode se transformar no que o pau-brasil, o diamante, o café ou a borracha, em outros momentos, representaram, sob regimes extrativistas ou de exploração avassaladora; ao contrário, ter-se-ia, nele, a possibilidade de construção de um ambiente sustentável, pujante e tecnológico, visando, inclusive, o protagonismo regional e global.
Sob o segundo prisma da análise, o Estado e as gentes sempre foram coniventes com o cartolismo e com a apropriação da coisa popular por algumas (poucas) pessoas que, do ponto de vista prático, preocupam-se apenas com elas e os seus projetos particulares.
Claro que há gente idealista e comprometida com um bem maior, mas, mesmo nessas situações especiais, a estrutura vigente engolia os ideais (e os idealistas), moendo e expelindo, com raras exceções - dentre elas o Athletico Paranaense -, mais do mesmo.
De todo modo, nenhum governante, assim como nenhum cartola, têm o direito de destruir uma relação - ou um sonho -, que se oferece a milhares de famílias ou brasileiros que apostam no futebol como elemento ascensional.
Daí o dever moral e ético, diante da falência sistêmica do associativismo, de se promover uma evolução modelar, capaz de inserir a atividade que, a despeito de sua importância, mantinha-se, até a Lei da SAF, numa espécie de marginalidade econômica.
A resistência do cartolismo, no caso, que se iniciou de modo silencioso e começa a se expressar com mais vigor, não expressa ato de bravura, mas de pactuação com o atraso e com o, de certo modo, descaso com o torcedor e o cidadão comum.
Nesse sentido, às falácias históricas que sustentaram o modelo - tais como "o futebol é nosso", "a situação no Brasil é diferente" e o que funciona na Europa não funcionará por aqui, e "o torcedor não aceitará a entrada de investidor" -, soma-se uma que já se ensaia para justificar a manutenção do poder cartolarial: "a história e as glórias do passado têm um valor subjetivo, impeditivo da precificação de uma operação monetária".
Mas não adianta achar que, num ambiente globalizado, competitivo e demandador de capitais, times tradicionais em crise - e quase todos estão, em maior ou menor intensidade - conseguirão retomar, apenas com a boa vontade de abnegados (ou com uma plataforma supostamente pautada na honestidade, ética e trabalho), as glórias pretéritas. Ou que os times em ascensão, que poderiam subverter o eixo de força do futebol nacional, como o Fortaleza, conseguirão repetir, de modo recorrente, façanhas como a de 2021, no campeonato brasileiro.
Não vão.
O sistema jurídico, pela primeira vez, oferece aos clubes um caminho para que a passagem ao modelo empresarial ocorra num ambiente regulado, em que o próprio clube poderá, em decorrência de lei, exercer a função de guardião das tradições do time, de modo inafastável por qualquer pessoa ou investidor, independentemente de seu poder econômico.
Esse é o fato da realidade: a Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, oferece, de modo inédito desde a introdução do futebol no País, caminhos - e não apenas um - para que, levando-se em conta a realidade de cada time, estruturem, se quiserem, projetos de resgate e afirmação de importância econômica e social, local, regional e nacional do futebol.
O não querer tem muito mais - senão apenas - a ver com a sustentação de interesses privados do que com a aderência cultural da torcida. Porque não é para um grupo político ou para uma pessoa, travestida de salvadora, ou mesmo para um clube associativo, que se torce - é para o time, que expressa, aliás, um conjunto de valores que somente o respectivo torcedor sabe capturar.