COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Meio de campo >
  4. SAF - Dúvidas mais frequentes e algumas respostas - Parte 1

SAF - Dúvidas mais frequentes e algumas respostas - Parte 1

quarta-feira, 9 de março de 2022

Atualizado às 07:48

Desde 2016, quando surgiu o tema da SAF (em livro denominado Futebol, Mercado e Estado1), que logo se converteu em projeto de lei, de autoria do Deputado Federal Otavio Leite2, e, posteriormente, com todas as evoluções e ajustes decorrentes de anos de debates com centenas de agentes e instituições de diversas naturezas (jornalistas, atletas, dirigentes, reguladores, magistrados, congressistas, membros do executivo etc.), pouca gente acreditava que a SAF seria efetivamente incorporada ao sistema jurídico brasileiro.

Apesar da resistência (ou, em muitos casos, da inércia) do poder cartolarial, e de várias circunstâncias, coincidências e movimentos de sorte, há meses vigora a Lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), fruto do Projeto de Lei 5.516/2019, de autoria do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG) - daí a lei ser justamente denominada, além de Lei da SAF, Lei Rodrigo Pacheco.

Guardadas as devidas proporções, a incredulidade em relação à proposta originária deu lugar, após o advento da Lei da SAF, a um certo ceticismo, que, por conta do anúncio de algumas recentes operações (Cruzeiro, Botafogo e Vasco) ou intenções (Atlético Mineiro), parece ter dado lugar a um otimismo com o porvir.  

Esse estado de coisas aguçou, com razão, a curiosidade da sociedade - e de pessoas que gravitam ao redor do futebol. Daí o surgimento de uma série de dúvidas, que merecem, neste espaço, rápidas e objetivas respostas, as quais são apresentadas a seguir:

Todo clube deverá constituir uma SAF? 

R: Não, a Lei da SAF não obriga a transformação ou a constituição da SAF. A decisão, em relação a qualquer um dos caminhos, ou a nenhum deles - caso em que o clube permanecerá uma associação sem fins lucrativos - somente poderá ser tomada pelo próprio clube.

Quem deverá decidir se um clube caminhará para constituição da SAF? 

R: A competência para tomar a decisão final é da assembleia geral de associados do clube, que deverá se manifestar quando convocada.

Todo clube deverá convocar uma assembleia para deliberar sobre tema relacionado à SAF? 

R: Não. A decisão sobre a convocação seguirá o rito previsto no estatuto de cada clube. Geralmente, a competência convocatória, para matéria de importância como esta, é atribuída ao Conselho Deliberativo ou a determinado número de associados - mas pode ser diferente.

Caso um clube decida constituir uma SAF, quem será o proprietário das ações de emissão da SAF? 

R: Na largada, o próprio clube. Ele deverá transferir à SAF ativos relacionados ao futebol (mediante integralização de aumento de capital, por exemplo) e, em contrapartida, receberá todas as ações de emissão da SAF.

O clube pode ser acionista único da SAF? 

R: Sim, pode.

Como um investidor se torna acionista da SAF?

R: Basicamente, de três maneiras: (i) comprando ações de emissão da SAF que pertencem ao clube - caso em que o preço ingressa na conta do próprio clube; (ii) subscrevendo novas ações de emissão da SAF, que se somarão às ações detidas pelo clube - hipótese em que o pagamento das ações subscritas (a título de integralização de capital) será destinado exclusivamente aos cofres da SAF; e (iii) adotando-se um modelo híbrido, resultante das duas situações anteriores.

A Lei da SAF fixa uma forma de cálculo do valor do clube ou da SAF?

R: Não. A "valorização" será livremente negociada entre partes que resolverem negociar uma operação. Vários critérios podem ser adotados para avaliar uma empresa (logo, também uma da SAF), como: fluxo de caixa descontado, múltiplo de EBITDA (sigla de Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization), múltiplo de receita, dentre outros. Qualquer um poderá ser utilizado.

É importante que o clube esteja bem assessorado para defender e negociar o maior valor possível e, consequentemente, obter o preço adequado numa negociação. Em qualquer caso, dois fatores deverão (ou poderão) ser considerados, sendo um negativo e outro positivo: o endividamento reduz o preço fixado para uma companhia - logo, à SAF, também; por outro lado, times de futebol são "ativos" únicos, e, assim, podem ser negociados acrescidos de valores "intangíveis" que não seriam obtidos em outras atividades. Afinal, existe apenas um Galo, um Furacão ou um Tricolor Paulista, por exemplo.

O estádio, se pertencente ao clube, deverá, obrigatoriamente, ser transferido para SAF?

R: Não. O conjunto patrimonial (ativos e passivos) transferido do clube para SAF poderá, observados os requisitos da Lei da SAF, ser definido em função de cada caso concreto. Se o estádio permanecer com o clube, então, a SAF e o clube deverão celebrar contrato de locação, de arrendamento ou de outra natureza, para disciplinar o uso do imóvel pela SAF, em troca, a princípio, da respectiva contrapartida financeira - que poderá ser utilizada para manutenção da estrutura e atividades clubísticas.

E a marca, passará à propriedade da SAF?

 R: Dependerá da negociação realizada e das características de cada clube. De todo modo, não há obrigatoriedade de transferência, a título de "propriedade", da marca. Ela poderá ser, por exemplo, objeto de licença de uso exclusivo à SAF, no âmbito do futebol, por prazo de longa duração, 50 ou 75 anos, por exemplo, em troca do pagamento de remuneração financeira (royalties).

O investidor de uma SAF poderá vender suas ações? 

R: As ações de emissão de uma companhia - logo, de uma SAF - integram o patrimônio de seu proprietário, e poderão ser vendidas, portanto. Na negociação de ingresso do investidor, o clube poderá, no entanto, condicionar a realização do negócio à sua permanência mínima por determinado prazo (5 ou 7 anos, por exemplo), caso em que a venda, nesse prazo, estará proibida (isso se chama, no jargão do mercado, "lock-up"). O clube também poderá exigir a realização de oferta prévia da venda a ele, caso em que terá preferência para aquisição das ações. E poderá tentar impor a restrição de venda a terceiros que ostentem (ou não) determinadas características, como reputação ilibada, patrimônio mínimo, experiência em abertura de capital etc.

Toda SAF será bem-sucedida? 

R: Assim como nem toda empresa é sustentável - e eventualmente quebra -, nem todo casamento resiste ao tempo ou nem todo filme produzido em Hollywood é lucrativo, nada (ou ninguém) pode garantir que toda SAF será exitosa. Mas, pela primeira vez desde a Constituição de 1988, há uma lei que não impõe um comando formal, apenas, autorizador da constituição de uma empresa ou mesmo obrigando o clube a constituí-la.

A Lei da SAF, de forma pioneira, cria a SAF como elemento nuclear de um sistema dotado de uma série de instrumentos aptos a viabilizar a passagem ao modelo empresarial e a acomodar interesses, direitos e obrigações de clubes e investidores. A SAF não é um fim em si, mas a via jurídica de legitimação e de segurança para os agentes que fazem ou farão parte do sistema do futebol (clubes, investidores, jogadores etc.).

A SAF que tiver um clube como acionista minoritário e um investidor na posição de acionista controlador ficará sujeita à vontade exclusiva do acionista controlador? 

R: A resposta deve ser fragmentada. A Lei da SAF confere ao clube fundador da SAF uma série de direitos que não podem ser afastados ou ignorados. Assim, enquanto o clube detiver ao menos 10% das Ações Classe A representativas do capital social votante ou do capital social total, a aprovação das seguintes matérias dependerá, necessariamente, de seu voto afirmativo: (i) alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de qualquer bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido pelo clube ou pessoa jurídica original para formação do capital social; (ii) qualquer ato de reorganização societária ou empresarial, como fusão, cisão, incorporação de ações, incorporação de outra sociedade ou trespasse; (iii) dissolução, liquidação e extinção; da SAF; e (iv) participação em competição desportiva sobre a qual dispõe o art. 20 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998.

Caso o clube passe a deter menos de 10% das ações Classe A, mesmo que seja apenas uma ação, ainda assim as seguintes matérias continuarão a depender de seu voto afirmativo: (i) alteração da denominação; (ii) modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; e (iii) mudança da sede para outro município.

Além das imposições derivadas da Lei da SAF, o clube poderá, no âmbito da negociação com um investidor, negociar e fazer (ou tentar fazer) constar do acordo, outros direitos que lhe possam parecer relevantes para condução da associação. 

Muitas outras dúvidas, algumas singelas, outras mais complexas, merecem explicações, e serão apresentadas - e respondidas - nas colunas seguintes.

__________

1 CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; MANSSUR, José Francisco C. Futebol, Mercado e Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2016.

2 Autor do Projeto de Lei 5.082, de 2016.