O fim do fim da história do São Paulo
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
Atualizado às 10:11
Escrevi, neste mesmo espaço, em 20/2/19, artigo cujo título era "o fim da história do São Paulo Futebol Clube". O texto não foi bem recebido.
Dirigentes do clube - alguns que considerava e ainda considero amigos - o tomaram como uma crítica dirigida. Não era esse o propósito.
Pretendia-se, isso sim, provocar o necessário debate sobre a corrosão do sistema associativo, sustentado pela mais sórdida politicalha, que se refletia - e se reflete - sobre toda estrutura do futebol.
Resgato, novamente, o tema. O ponto de partida, após quase três anos, é o mesmo; mas, infelizmente, o de chegada mudou, e para pior - como se antevia, aliás, naquela oportunidade.
O São Paulo não vai acabar ou desaparecer.
Ele continuará a existir, de algum modo, assim como o Botafogo, o Cruzeiro, a Portuguesa ou o Juventus (da Rua Javari) também permanecem existindo. Não apenas eles: como o Paulistano, primeiro tetracampeão paulista de futebol da história, que mantém sua atuação associativa. Portanto, em 20 ou 30 anos, o São Paulo ainda integrará o plano material.
O fim que se afirmava, em 2019, tinha a ver com o encerramento de um ciclo, que chegara ao fim. E realmente chegou - apesar do esforço retórico e político dos dirigentes são paulinos de defenderem a sua continuidade e viabilidade.
O São Paulo foi o melhor do Brasil (e um dos melhores do planeta) enquanto a administração e o ambiente do futebol resistiram às transformações sociais e econômicas, criadoras de uma sociedade conectada, tecnológica, globalmente competitiva e dependente de novos recursos para financiamento da empresa futebolística.
Mas deixou de ostentar a posição de vanguarda, que anteriormente lhe coube, a partir do momento em que se ensimesmou e passou a acreditar que, por ser (supostamente) diferente, poderia ignorar a realidade - e criar seu mundo próprio, alimentado por fantasiosas narrativas midiáticas.
Lembre-se, a propósito, que, em outros setores, a arrogância (ou a negligência diante dos movimentos disruptivos) destruiu corporações ou instituições outrora reputadas inabaláveis (Blockbuster, Kodak, Atari, Pan Am etc.).
Assim, aquele artigo - antecedido por outros com semelhante teor, aliás -, pretendia chamar atenção para o fato de que, se o vanguardismo havia chegado ao fim, dever-se-ia trilhar, necessariamente, um de dois caminhos: (i) o da decadência ou (ii) o da reafirmação de sua história gloriosa, pela reconstrução de suas bases, materializada pela implementação do processo de separação do futebol.
Os resultados que (não) se colhem, dentro e fora de campo, há pelo menos 12 anos, comprovam, sem necessidade de qualquer esforço argumentativo, a opção que se fez.
E o pior ainda está por vir.
Trata-se do desfecho de um projeto de dominação de natureza absolutista, iniciado após as eleições presidenciais de 2020.
Inicialmente, foi necessário eliminar os elementos que remetiam ao trabalho do presidente anterior, mesmo que fossem positivos. Daí o boicote, consciente ou inconsciente, ao êxito no campeonato brasileiro.
Na sequência, promoveu-se um covarde processo de linchamento público de Daniel Alves, até a sua saída (ou expulsão), pelas portas do fundo. Simultaneamente, apostou-se num evento redentor, um campeonato sem expressão esportiva nos tempos atuais: o São Paulo fez do paulista a sua copa do mundo; e a venceu.
Com o título, formou-se o ambiente para imposição da narrativa da reconstrução e da limpeza das mazelas acumuladas pelas gestões anteriores - das quais, aliás, muitos dos atuais dirigentes fizeram parte, de maneira ativa e essencial. Ou seja: surgia uma administração vencedora que saberia levar o time ao topo, novamente.
Apostava-se, porém, para encaminhamento do projeto, numa campanha ao menos razoável no campeonato brasileiro de 2021, sem vexame, para justificar o mais audacioso dos movimentos: a reforma estatutária do clube. Com ela, a direção defenderia que seria possível, enfim, realizar as ações necessárias para afastar a herança do passado e reconstruir as bases do futuro.
Para azar de todos os são paulinos - e dos arquitetos da planificação -, os planos, nessa fase, fracassaram. O time realizou a pior campanha de sua história.
Mas a politicalha cobra, mesmo assim, o seu preço.
O conselho deliberativo estará amanhã, dia 16, diante de uma proposta que representa, na verdade, um explícito plano de dominação, que viabilizará, em resumo, o estrangulamento de qualquer movimento oposicionista, o emprego de técnicas estatutárias de coação de dissidentes, o aparelhamento político dos órgãos administrativos e do futebol e a reeleição, dentre outras medidas que fariam Hugo Chávez vibrar.
Se se tratasse de uma questão puramente clubística, sem impactos no futebol, talvez ninguém, ou quase ninguém, se importasse. Mas não é o caso. Como não tem sido há anos.
Todos esses fatos, que são apenas alguns no mar de barbaridades que inundam e afogam o futebol, confirmam que, com efeito, aqueles tempos de glória, sob o clubismo, chegaram ao fim. A política - ou a politicalha - se sobrepôs ao que realmente importa.
O São Paulo está na mesma encruzilhada de 2019: renovar o pacto com a decadência ou se transformar - o que pressupõe o isolamento dessa realidade nefasta, que não combina com uma empresa futebolística da magnitude do São Paulo -, mediante a separação do futebol do clube.
Parece não haver, com exceção de um ou outro porta-voz envergonhado, uma manifestação pública de apoio à proposta que se votará amanhã. Mesmo assim, tudo indica que os veneráveis conselheiros são-paulinos lavarão suas mãos.
Desafia-se, pois, o evidente fim de um ciclo. Pior: casa-se com ele, e se decreta, agora sim, o fim do fim do processo decadencial para mergulhar e incorporar, ao cotidiano são-paulino, a decadência como característica existencial.
Enquanto isso, duas dezenas de cartolas festejam suas vitórias pessoais, à conta de quase 20 milhões de são paulinos.