Com o retorno do público aos Estádios do Brasil no segundo semestre desse ano, inicialmente com as limitações percentuais e posteriormente com capacidade plena e observância somente dos protocolos definidos (máscara, vacina), o futebol brasileiro consolidou sua retomada em uma temporada que foi ainda confusa por conta do avanço do calendário anterior, conseguindo entregar no mês de dezembro todas as competições regularmente encerradas.
O abalo verdadeiro do período pandêmico ainda não é possível ser aferido com exatidão, uma vez que a exemplo do público que ficou metade do exercício de fora, alguns outros fundamentos econômicos dos clubes ainda dependem de recuperação (programas de sócio torcedor, p.ex.), para então sabermos qual é a posição efetiva das associações esportivas no atual momento.
Não pode deixar de se considerar, independentemente das contingências e prejuízos vividos por conta da crise sanitária, que o futebol brasileiro e a quase totalidade dos seus maiores clubes já experimentavam situação quase falimentar ao final de 2019, transcorrido dentro de absoluta normalidade, o que se evidenciava pelos números consolidados daquele exercício que por si revelavam o estrangulamento dos caixas em virtude do aumento dos custos dos departamentos de futebol (de 3,8 BI em 2018 para 4,7 BI em 2019) e a elevação das dívidas e obrigações que importavam em somatório devedor na casa de 8 BI, devidos pela elite do futebol doméstico.
A temporada da retomada indica ainda a recorrência cada vez maior das equipes ditas grandes em flertar com o descenso e, ainda mais preocupante, a permanência de clubes tradicionais fora da elite e a enorme dificuldade em superar o susto e retornar ao topo logo no ano seguinte ao da queda, fatos que não deixam de ser, lamentavelmente, uma tendência contemporânea.
Por outro lado, também vai se configurando a elevação do abismo entre as associações que tem primado pela organização e estruturação, assim despertando interesse de investimentos (cada uma dentro de modo operacional próprio), daquelas que vão se condenando às diminuições de receita, público e torcida, com a corrosão de fundamentos econômicos e, via de consequência, de competitividade e incremento ou fidelização de sua massa torcedora.
Com efeito, somando-se ao Flamengo e ao Palmeiras que têm protagonizado grandes conquistas no último triênio, o Atlético Mineiro, a partir de um modelo de "clube de dono", tem trilhado o caminho da consolidação esportiva e financeira, confirmado pela conquista do Brasileiro e da participação na final da Copa do Brasil e, especialmente, pela busca de futuras receitas com a construção de seu próprio equipamento (estádio) esportivo.
São várias as novas potencialidades de receitas, disponíveis e acessíveis para todos, a começar pelos próprios patrocínios que hoje vão além da publicidade na camisa e sua exposição em jogos e programas esportivos, mas igualmente na exploração da capilaridade das carteiras dos clubes que são patrocinados, através do interface com o público torcedor objetivando a maximização de lucros e negócios (Palmeiras / FAM - Crefisa é exemplo paradigmático, com o patrocinador usando dados de carteira para maximizar a operação de suas instituições de ensino e financeira).
Existem ainda dentro de um espectro de miríade e oportunidades, diversas outras possibilidades como a nova formatação das transmissões com base na Lei do Mandante, a desejada fundação da Liga, a exploração direta do mercado de apostas, e especialmente das novas relações que são advindas da denominada Lei da Sociedade Anônima do Futebol (Lei Federal 14.193/21).
Mesmo não se tratando de panaceia, a legislação que cuida da adoção do modelo empresarial traduz provavelmente o maior êxito da temporada da retomada, aquele "gol" inspirador de uma reação, um permissivo legal que pode galgar as problemáticas associações esportivas, no que tange à sua administração e custeio, a um desejável patamar de sustentabilidade.
Ao lado da sua abrangência para o desenvolvimento social e dos meios para seu alcance, referida legislação cuida principalmente da reorganização dos passivos dos endividados clubes e novas formas para seus financiamentos, o que pode render no final do dia, caso a transformação seja bem executada, a obtenção de dividendos e melhora da própria capacidade de manutenção e investimentos na busca de futuras glórias e conquistas, sentido existencial dos times de futebol.
Neste cenário, arrisca-se cravar que poucos clubes poderão não adota-la, outros podem pensar e concluir sem pressa pelo caminho que seja de sua melhor conveniência, enquanto a imensa maioria necessita a adoção imediata, sob pena do sucumbimento de sua própria existência, ao menos daquela existência com a qual figura nas enciclopédias e na história; certamente o novo modelo reverter-se-á não só no ajuste do clube optante, como também no aprimoramento do mercado futebolístico como um todo, mormente consideradas as necessidades de governança, transparência e defesa dos interesses envolvidos, sejam do clube como do seu investidor.
A propósito do "novo mercado futebolístico", é evidente que reclama sua redefinição completa e urgente, através de ações como a revisão do produto, do modelo de transmissão, planos de monetização e cooptação de novos torcedores, inserção no E-Sports, estabelecimento de planejamento estratégico de curto, médio e longo prazos, adoção de ferramentas que venham assegurar a transição geracional, aderência a novos mercados como de apostas já citado; vê-se de forma cristalina neste último, a miopia da classe dirigente, que reputa como boa a situação atual onde empresas estrangeiras com sede em ilhas e oceanos exploram sua potencialidade faturando os seus bilhões, enquanto deixam as associações esportivas satisfeitas com migalhas, por exemplo o patrocínio das suas camisas: ora, tal visão não pode ser mais distorcida, clubes devem capitanear esse mercado e não se satisfazerem com ínfima parte de seu sucesso...
A classe dirigente, diante desse quadro, tem a responsabilidade de se organizar internamente e se cotizar conjuntamente, seja no primeiro caso para buscar reerguer os clubes dos quais são mandatários e, no segundo, para se preparar às mesas de negociações onde se pretende seja reinaugurado todo o estado geral do jogo - e das coisas, tarefa hercúlea que envolve tenacidade, desprendimento e coesão, além da convicção que a hora é de construir, empreender, edificar.
Mais do que tudo, ou melhor, antes de tudo, é hora de mudança, de aproveitar o momento mais disruptivo da história do futebol brasileiro para torná-lo um grande e próspero negócio, para tanto, a cartolagem deve entender e assumir o seu papel, que é diverso das práticas tacanhas com as quais se guiaram através destes anos todos: como foi vaticinado (*) por Simon Kuper e Stefan Szymanski, "por muito tempo o futebol driblou o iluminismo, os clubes ainda são em sua maioria comandados por pessoas que fazem o que fazem porque sempre procederam da mesma forma": não há mais espaço para tergiversar o assunto, a hora é agora! Mãos à obra, pois!
(*) Autores citados na obra - SOCCERNOMICS, Editora Tinta Negra, 2010)