A SAF e o crivo da Academia
quarta-feira, 14 de julho de 2021
Atualizado às 09:55
A aprovação pelo Senado do PL 5.516/19, seguida das manifestações reivindicando apreciação com urgência do texto pela Câmara, remetida por entidades representativas de grandes clubes do futebol brasileiro, aumentou sobremaneira o ambiente de otimismo e expectativa pela entrada em vigor do conjunto de normas que deverá colocar o futebol brasileiro em novo patamar de obtenção de receitas, geração de riquezas, qualidade do espetáculo e resultados esportivos.
Entretanto, nem sempre foi assim. Nessa trajetória que vem desde 2015, houve muitos momentos nos quais pessoas expressaram ceticismo ou mesmo a convicção - não totalmente infundada - de que qualquer proposta de alteração na forma de organização dos clubes pudesse prosperar.
A bola hoje está com a Câmara dos Deputados, que acaba de aprovar, com razão, regime de urgência de votação.
Tudo indica, portanto, que em breve o Poder Legislativo cumprirá sua função e remeterá ao Poder Executivo, para sanção, um marco transformacional, sem precedente na história do pais e sem comparação, em sua amplitude, com qualquer país do planeta. Seja como for, só o fato de colocar o tema da organização "societária" dos clubes brasileiros no centro do debate, como está, já configura, por si só, significativa vitória daqueles que entendem que esse é o ponto central quando se discute evolução do nosso futebol. E isso aconteceu ao longo de tantos encontros, tantos debates, tantas discussões, tantos artigos publicados, tal qual nesse prestigioso espaço que nos é concedido semanalmente para tratar do tema.
Vitória ainda mais relevante quando percebemos que o tema da SAF conseguiu atrair a Academia para as discussões. Professores e autoridades de diversas áreas do Direito, alguns sem nenhuma relação anterior com temas do esporte, se propuseram a participar de painéis, seminários, escrever prefácios de livros e colaborar com artigos, transbordando a conversa sobre o modelo de organização dos clubes de futebol para além do ambiente do direito desportivo e seus valorosos, preparados e competentes operadores.
Exemplo de tal fenômeno deu-se no último dia 9 de julho de 2021, quando a tradicional e respeitadíssima Associação Brasileira de Direito Financeiro - ABDF realizou o Evento "Sociedade Anônima do Futebol - desafios e experiências.", no qual juristas do porte do Senador Carlos Portinho, Rodrigo Monteiro de Castro, Tácio Lacerda Gama, Lucia Pauliello Guimarães, Roberto Duque Estrada, Lina Santin, Gustavo Noronha, André Chame e Marcos Catão dedicaram horas de seu precioso tempo e parte de seu vasto conhecimento para discorrerem sobre o tema. A íntegra do seminário pode ser assistida aqui.
Nesse mesmo evento, no qual todos os participantes fizeram apontamentos brilhantes, chama especialmente a atenção a marcante a fala da Professora Paula Forgioni (link acima, minutos 41:45 a 57:45), não só pela autoridade que lhe confere sua condição de Professora Titular e Chefe do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direto da USP, mas, especialmente, pela forma incisiva e clara com que abordou o tema, com a qualidade daqueles que conseguem em pouco tempo de explanação trazer argumentos definitivos sobre o assunto a que se dispõem a falar.
Professora Paula Forgioni se apresenta como descendente de fundadores da Sociedade Esportiva Palmeiras, portanto, alguém com vínculos ancestrais com os movimentos de abnegados que fundaram nossos clubes-associações lá nos idos de 1900. Para, em seguida, contrapor o modelo associativo até hoje vigente com uma das colocações essenciais que fez: "Nós estamos prisioneiros de uma evolução histórica que foi barrada!".
Em seguida, aponta para o processo de "dissipação de riqueza", fruto do "aprisionamento histórico" do futebol brasileiro, por uma "casta" que se recusa a abrir mão de parte do poder gerado pelo associativismo, privando o Brasil de adotar os meios e instrumentos de desenvolvimento de um mercado como potencial econômico absurdo no futebol.
O futebol brasileiro pode gerar muito mais riqueza, contribuir com a economia de forma ainda mais significativa e, melhor, fazer essa riqueza circular, aponta Professora Paula Forgioni. Porém, na mesma conclusão, adverte: "não tem jeito de captar recurso se não for via Sociedade Anônima, se não for via instrumento de captação de recursos de mercado. Deixe-me explicar: Você não capta recursos de mercado via sociedade limitada, isso não existe! Associação é para Clube! Quando meus tios avós fundaram o Palmeiras, tenho fotos deles fazendo remo no Rio Tietê, aquilo é para aquela época (rindo) não tem nada a ver!"
E complementa, captando exatamente a intenção de atrair o futebol brasileiro para que use os instrumentos de mercado hoje existentes e em pleno e saudável desenvolvimento no Brasil, dos quais o sistema associativo priva nossos clubes completamente: "Nosso mercado de capitais é perfeito? Não! Tem problemas? Tem. Mas é um muito melhor do que ter um monte de associação... nós temos um mercado financeiro e de capitais que está sendo capaz de atrair investimentos. Olha o que aconteceu com a nossa bolsa ao longo de toda pandemia. O Mundo está com excesso de liquidez, o Brasil tem que ser um porto e nós, com todos os nossos problemas, estamos conseguindo atrair esse capital. Ou seja, há uma caixa de ferramentas pronta que o Projeto tenta acessar... que, apesar de todos os defeitos, está funcionamento bem, obrigada. Nós estamos conseguindo atrair investimentos."
Mais adiante, sua fala enfrenta a questão dos casos de má-gestão e atos de corrupção privada nas associações. Efetivamente, nesses últimos tempos, clubes-associação e entidades de administração do esporte tem apostado na criação de diretorias ou comitês de conformidade e compliance como instrumento de demonstração ao ecossistema de uma certa intenção em coibir e censurar internamente malfeitos dos dirigentes.
Numa imagem de enorme felicidade, Professora Paula Forgioni ensina: "compliance é como vela, não faz milagre, mas demonstra no mínimo boa intenção... nós temos que demonstrar essa boa intenção, com sociedades anônimas, com fiscalização, com auditoria externa, trazendo a CVM (trazer a CVM para o jogo é genial) ... a contabilidade tem que ser feita tal qual companhias abertas...".
Isoladamente, portanto, diretorias de conformidade e compliance em clubes-associação - desta vez a imagem é nossa - serviriam não como medicina preventiva, para evitar a doença, ou mesmo como hospital, assim pensado como local de tentativa de cura, mas sim, infelizmente, como um IML, que serve para fazer a autópsia depois do paciente morto e tentar entender, depois do fato consumado, as causas do óbito já irreversível. No contexto da adoção do regime empresarial e acompanhado de auditoria e fiscalização, amparada pelo sistema de proteção da Lei das SAs, aí sim, compliance teria inegável valor e eficácia.
A fala da Professora Paula Forgioni, como as demais, no evento organizado pela ABDF, tem a qualidade histórica do olhar científico, distanciado de paixões e envolvimentos pessoais/profissionais, com a autoridade que seus títulos acadêmicos, seus diversos livros jurídicos e sua trajetória absolutamente irretocável lhe conferem e a precisão didática que somente se encontra naqueles que são vocacionados ao magistério.
É a Academia se debruçando e reconhecendo no PL 5.516/19, que cria a Sociedade Anônima do Futebol, uma alternativa de necessária evolução do futebol brasileiro enquanto patrimônio cultural da nação e meio econômico de geração e distribuição de riqueza.
Valiosíssimo aval.