Desigualdade, Anitta e a função do futebol
quarta-feira, 30 de junho de 2021
Atualizado às 07:56
O jornalista Cristiano Romero apontou de modo cirúrgico, em sua coluna no Valor do dia 24 de junho, a origem e o motivo da manutenção da desigualdade no Brasil: "a escravidão, usada como fator de acumulação de capital por quase 400 anos, nunca nos deixou, o que explica o estranhamento das elites diante da maioria da população e seu desdém com a educação do povo, característica ausente na maioria das nações".
Ele tem razão.
O ser cordial, simbolizador da brasilidade, talvez se revele, na verdade, um ser egoísta, centrado em seus interesses (mesmo que legítimos) e sem preocupação, de modo geral, com o coletivo - especialmente com a educação das gentes.
Aquela característica - o egoísmo - explica o "sonho brasileiro", uma variante deformada do american dream: condomínio-fechado + carro-blindado + clube-social-exclusivo + casa-de-campo-em-condomínio-fechado + viagem-aos-Estados-Unidos.
Isso tudo, como já se tornou parte do costume, servido pelos ocupantes das classes menos favorecidas, desprovidos, não raro, de oportunidades, e submetidos a situações de trabalho que, se tivessem escolha, não se submeteriam (submissão que, por definição, não deixa de indicar, aliás, na linha da crítica de Cristiano Romero, a face contemporânea da escravidão, preservada pela desigualdade).
Daí o horror que parcela da sociedade sente ao ter que conviver com empregados domésticos ou operários em aviões com destino a Orlando. Mais ainda: a raiva indisfarçada ao se ver abandonada, como se viu em tempos recentes, por seus subalternos, libertados da ausência de escolha.
No plano corporativo, uma ação, ainda incompreendida, provocou, sob certos aspectos, reação semelhante da burocracia gerencial: a indicação de Anitta, pelos acionistas do Nubank, para compor seu conselho de administração.
Anitta é muito mais do que a girl from Rio: é uma garota do Brasil e uma garota do mundo. Um fenômeno musical e empresarial, que poderá ter o tamanho de Jennifer Lopez (ou de outras divas pop), se conseguir superar o obstáculo que Oscar Niemayer (talvez o maior arquiteto da história), por exemplo, não superou (se é que se preocupou com isso): o desdém das instituições e das elites locais.
A contribuição que a nova conselheira pode dar a uma companhia pretensamente disruptiva (termo transformado em mantra de uma geração) vai muito além de longas reuniões de conselho, embaladas por planilhas, café e pão de queijo; porque ela é, na essência, contestadora, transformadora e realizadora.
O tempo cuidará de confirmar o acerto do movimento. Entretanto, parece que se deu início à revisão de uma estrutura excludente e estimuladora da concentração de oportunidades.
Consciente ou inconscientemente, os acionistas do banco contribuem com o rompimento de uma barreira que cria e isola pequena casta beneficiada pelo corporativismo. Não só: também lançam luz sobre a impertinência dos padrões de manuais, construídos para afirmar a mesma casta que, desde os anos 1990, se espalha pelas empresas brasileiras.
Uma ampla revisão estrutural, por motivos semelhantes, deveria ser feita no âmbito do futebol.
Apesar de classificado como o esporte do povo, estabeleceu-se e se mantém, na verdade, como esporte da elite, que o domina, desde antes da Lei Áurea, por intermédio dos reservados clubes associativos. Nesse ambiente, a torcida representa tão somente a via legitimadora do discurso preservacionista.
A resistência histórica às mudanças estruturais, ou melhor, à possibilidade de escolha entre ao menos dois modelos, sendo um caracterizado pela ausência de finalidade econômica (que vem desaparecendo nos principais centros mundiais de prática do futebol) e o outro pela afirmação da natureza econômica (predominante naqueles mesmos centros), estimulou a manutenção do cartolismo como instituição definidora dos padrões nacionais.
É pela lente do cartola, e para satisfação de seus projetos, que o futebol vem sendo governado. Raramente um representante do povo, ou seja, um jogador, transpõe as barreiras sociais e controla o destino de um time de futebol.
Daí a dominação do esporte por herméticos grupos que se revezam no e pelo poder (e raramente pela diversidade de ideias).
A estratificação no futebol não é, pois, obra do acaso; mas da preservação de uma narrativa que, mesmo responsável pela falência do sistema - afinal, os principais clubes acumulam dívidas superiores a R$ 11 bilhões -, ainda se mantém (quase) incólume aos avanços tecnológicos e empresariais.
O futebol expressa, portanto, os mesmos problemas de concentração e de inacessibilidade que impedem o desenvolvimento da Nação. Por isso a necessidade de reconstruí-lo como poderosa via de inserção e de desenvolvimento.
É sobre isso - e não apenas a respeito de gols feitos ou perdidos, impedimentos, cartões ou posição na tabela - que o brasileiro deveria se preocupar. E exigir mudanças imediatas.