A queda do império espanhol e a necessidade de criação de um modelo brasileiro de organização e propriedade do futebol
quarta-feira, 10 de março de 2021
Atualizado às 07:50
Shogun, a épica (e maravilhosa) novela sobre o Japão, escrita por James Clavell, trata, obviamente, do país asiático, e de muito mais: dentre outros temas, da evolução e da involução humana, sob prismas culturais, sociais, econômicos, comerciais, políticos e religiosos.
Situada no início do século XVII, oferece um panorama riquíssimo a respeito da geopolítica mundial naquele tempo e da hegemonia ibérica, sobretudo lusitana, no comércio com o Japão; e da forma como a ganância e a intolerância criaram o ambiente para mudanças determinantes na construção de novas ordens de influência e de poder (que levariam à decadência de ambos os impérios europeus e ao surgimento de inigualável potência colonizadora: a Inglaterra).
Os ibéricos cometeram, ao longo da história, erros que os privaram da manutenção de posições hegemônicas: um deles foi a insistência no modelo estatal de conquista e exploração das colônias. Enquanto ingleses e holandeses, como exemplos, financiavam as empresas marítimas com capitais híbridos (públicos e privados), e assim dispunham de recursos para emprego em atividades essencialmente estatais, o patrimonialismo português e espanhol, caracterizado pela confusão entre o monarca e o reino (e suas riquezas), dependia da obtenção de financiamentos externos para manutenção dos excessos da corte e para expansão colonial e defesa das terras conquistadas.
O problema é que a conta um dia sempre chega. E chegou sob a forma de transferência de poder a outra nação e, de certo modo, de abdicação de soberania sobre políticas expansionistas e tarifárias. Portugal e Espanha jamais se recuperaram - e jamais voltarão a dominar e a dividir o planeta, como fizeram no passado.
No plano do futebol, Portugal, até Cristiano Ronaldo, nunca teve real expressão (apesar de ter produzido alguns excelentes jogadores, como Figo: melhor do mundo em 2001). O período de Eusébio também foi marcante, sem dúvida, mas não o suficiente para consagrar o país como uma potência.
Na Espanha, a história é diferente: o insucesso quase secular de sua seleção, que não merecia a fama que a enquadrava como potência até a conquista do Mundial de 2010 (sua primeira aparição em uma final de Copa do Mundo, aliás), não obstaculizou a construção, no plano clubístico, de projeto hegemônico, a partir da fissura que ainda hoje ameaça a sua unidade política. Foi assim que se forjaram Real Madrid, símbolo da força unificante de uma nação, e Barcelona, retrato da orgulhosa resistência catalã.
Criou-se, ali, um duopólio: de 1929 a 2020, ambos levantaram 60 títulos do principal campeonato espanhol (atualmente, observadas mudanças históricas, reconhecido como "la liga").
A desigualdade de forças e de tratamento que se atribuiu apenas aos dois clubes resultou, em relação aos demais, na inviabilidade sistêmica, o que exigiu a atuação estatal, por meio do advento de um marco regulatório indutor da passagem dos moribundos clubes-associativos para sociedades anônimas desportivas (SAD).
O modelo adotado não enfrentou e não resolveu a estrutura de privilégios concedidos a Real Madrid e Barcelona - que se mantiveram organizados sob a forma associativa - e, ao mesmo tempo, impediu o desenvolvimento empresarial de todos (ou praticamente todos) os demais times, transformados em SAD.
Durante anos, as contratações milionárias e os títulos de ambos os times esconderam a podridão e a corrupção internas - bem como o desacerto do modelo. Não à toa, no Brasil, tornaram-se símbolos de justificação do sistema existente e de sua viabilidade, sob a dominação da classe cartolarial.
Mas a farsa espanhola está em vias de ruir.
No caso do Barcelona, além das dívidas bilionárias - que, apesar de pagáveis, exigirão esforços e reestruturações que afetarão a capacidade de, no curto prazo, competir em alto nível -, seus dirigentes estão envolvidos em acusações de práticas de atos de corrupção (dentre outros crimes). Para complementar o cenário desastroso, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) acaba de reconhecer a ilegalidade do tratamento tributário diferenciado a clubes associativos, que se beneficiam de uma vantagem competitiva derivada de lei.
O que isso tudo tem a ver com o Brasil?
Ora, caiu o último argumento dos donos do futebol, de que a força espanhola demonstrava a viabilidade da preservação do clube, como via de organização da atividade futebolística, apesar do endividamento e da insolvência generalizada e da incapacidade do futebol brasileiro de, sob o sistema atual, reagir ao processo autodestrutivo.
Agora, não há mais a que se agarrar.
As mudanças, que já eram inevitáveis - e não ocorriam pela influência de cartolas que defendiam seus interesses, e não dos times, dos torcedores ou dos brasileiros - revelam-se, mais do que nunca, necessárias e emergenciais.
Daí a esperança de que o Senado Federal, enfim, conforme manifestação de seu presidente, senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG), autor do projeto de lei 5.516/19, que cria o "Sistema do Futebol Brasileiro, mediante tipificação da Sociedade Anônima do Futebol, estabelecimento de normas de governança, controle e transparência, instituição de meios de financiamento da atividade futebolística e previsão de um sistema tributário transitório", vote, nas próximas semanas, o modelo que poderá iniciar o processo de salvamento do patrimônio cultural e esportivo nacional e do recobro da esperança de 140 milhões de torcedores.