O Vasco da Gama, as Companhias das Índias e o tempo perdido
quarta-feira, 15 de julho de 2020
Atualizado às 09:08
O Club de Regatas Vasco da Gama foi - o tempo verbal é relevantíssimo - vanguarda. Mais do que isso: protagonizou situações importantes e pioneiras desde a implantação do regime republicano. Conforme se extrai, aliás, do sítio eletrônico oficial, o clube, fundado em 1898 por brasileiros e portugueses, com o propósito de fomentar a prática do remo, elegeu, em 1904, o primeiro presidente não branco: Cândido José de Araujo.
O futebol tardou algum tempo a fazer parte de sua estrutura. Foi em 1915 que se autorizou a prática do esporte que, rapidamente, passou a, de algum modo, confundir-se com a então curta existência clubística, a partir, talvez, do primeiro grande feito: o título do campeonato carioca de 1923.
Importante: ao contrário dos eternos rivais, Flamengo, Fluminense e Botafogo - lembrando que rivalidade não significa inimizade -, oriundos de zonas nobres e frequentados pela elite branca, o Vasco continha em sua gênese a vocação à tolerância e à inserção social. De seu elenco campeão participavam negros, mulatos e brancos.
A relevância dessa postura pode, talvez, ser comparada ao movimento que, na década de 1880, resultou na profissionalização do futebol na Inglaterra, com a aceitação, não sem resistências, da participação de times que contavam com jogadores remunerados em seus elencos (e, daí, a consequente superação do modelo amadorístico, conforme se retrata na Série English Game, disponível na Netflix).
Poucos anos depois do título inédito, o Vasco inaugurou um estádio de porte monumental para a época, conhecido como São Januário; que se tornou, aliás, palco de discursos do presidente Getúlio Vargas - como os proferidos no dia do trabalho nos anos de 1940, 1941, 1945, 1951 e 1952.
A construção contou com a participação ativíssima dos torcedores, muitos dos quais, conforme relatos emocionados de descendentes daqueles idealistas, emprestavam o pouco tempo livre à atividade construtiva do futuro palco de glórias futebolísticas.
De lá para cá, com efeito, as glórias não são poucas: títulos locais, nacionais e internacionais; o orgulho de ter vestido Pelé e Garrincha com o seu manto; a revelação de Marta - eleita por 6 vezes a melhor jogadora do mundo; o milésimo gol de Romário; e, mais importante do que tudo, a formação de uma nação de aproximadamente 10 milhões de torcedores - número semelhante ao de habitantes de Portugal.
O problema é que o processo evolutivo foi interrompido, não apenas pela rejeição de novas técnicas organizativas adotadas nos principais centros de prática do futebol, como pelo apego ao passado de conquistas, que se produziram em outros tempos - evidentemente.
O dilema vascaíno, como também de outros clubes tradicionais, reside, em outras palavras, no quase intransponível individualismo e na preservação do (destrutivo) modelo associativo-politiqueiro, que se concentra em poucas dezenas de associados-conselheiros, e que serve, no final das contas, aos próprios interesses pessoais desses agentes que dominam as relações internas; modelo que, por definição, se contrapõe a um Vasco moderno, grandioso, cumpridor dos designíos sebastianistas para os quais, aparentemente, foi concebido, por imigrantes que escolheram essas terras para irradiar feitos humanistas - e, no caso, esportistas e futebolísticos.
São Januário, aliás, poderia ter um papel central no resgate do histórico processo transformacional. Sua revitalização, respeitadas as características arquitetônicas - que devem ser preservadas e enaltecidas -, permitiria o impulsionamento do entorno, com a melhoria do comércio local e o surgimento de novas opções de serviços e moradias. A partir daí, toda a comunidade se beneficiaria, pelo Vasco.
Tal movimento, no entanto, jamais se consolidará se pensado de modo isolado e dissociado de um projeto maior, que envolve a reformulação das bases carcomidas, por meio de um movimento aparentemente brusco, mas que, na prática, serve para preservar a história e o patrimônio e para garantir o futuro sustentável: a passagem do clube de dono do futebol à posição de dono de uma companhia que seria, ela, a dona do futebol. Logo, empregando-se um simples raciocínio lógico, para preservar o próprio clube como dono indireto do bem maior: o futebol.
Além do controle societário - que jamais será abalado ou modificado, exceto pela vontade da assembleia geral de associados do clube -, do poder de indicação dos membros dos órgãos de administração e do direito de fiscalização das atividades internas, o clube ainda teria direito ao recebimento de dividendos, correspondentes à parcela do lucro anual, para emprego na melhoria do patrimônio associativo.
Se os conselheiros e associados se lembrassem da história de seus antepassados mais longínquos - eu, neto de português, lembro-me bem -, não hesitariam em evitar os erros dos Reis de Portugal, que insistiram na preservação do modelo patrimonialista e de manutenção do monopólio real das empresas marítimas (no caso do Vasco, clubística), mesmo sem recursos para financiá-las. As consequências foram fatais: perda do controle dos oceanos e das rotas orientais para países como a Inglaterra e a Holanda, que passaram a financiar os mesmos empreendimentos com recursos mistos (e depois privados), a partir da constituição de companhias - como as das índias orientais ou ocidentais - e do apelo às poupanças local e internacional.
Situação similar se apresenta, guardadas as características, as peculiaridades e as proporções, em relação ao Vasco: o protagonismo lhe vem escapando, apesar dos sinais inequívocos que foram - e são - desconsiderados por uma sucessão de dirigentes, de modo que se impõe, infeliz ou felizmente, aos gestores atuais, o dever de tomar, rapidamente, as decisões certas, e, assim, interromper o processo reducionista, a despeito do gigantismo de sua torcida e de sua história.
Ainda é possível recuperar o tempo perdido, desde que interesses ou sentimentos pessoais sejam preteridos pelo bem coletivo, pelo bem do Vasco.