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Raí e a política do futebol

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Atualizado às 08:03

No campo das artes, movimentos que sugerem uma revisão de suposta monotonia criativa e que são recepcionados, de algum modo, pelo mainstream resultam na formulação de proposições que decretam o fim de técnicas clássicas. Declarou-se, assim, a morte da pintura, da escultura e de outras manifestações consideradas, em determinados momentos, ultrapassadas ou conservadoras; como também se antecipou, pelos mesmos motivos, o desaparecimento de estilos musicais e de agrupamentos.

A obra - ou o objeto - denominada Fountain, encaminhada em 1917 por Marcel Duchamp ao Salão dos Artistas Independentes de Nova York, recusada como criação artística pela organização do evento, é, nesse sentido, um caso emblemático1.

Apesar da influência daquele artista sobre as gerações seguintes, sentida até os dias atuais, as técnicas subjugadas, em si, não apenas resistiram, como recobraram sua reputação e o seu valor. A história (ou a estória), porém, passou a ser revista ou reescrita, e contribuiu para o desenvolvimento do debate acerca das funções éticas e estéticas da arte. É disso, respeitadas as diferenças, que se trata no presente texto.

O futebol, como manifestação esportiva e cultural - e artística -, não deixará, pois, de existir. Aliás, José Miguel Wisnik, em seu fundamental Veneno Remédio - O Futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008), demonstra que, ao contrário, a existência do futebol, sob formas etéreas ou rudimentares, precede, em séculos, a sua concepção contemporânea. Os movimentos reformadores serviram, então, como indutores da evolução sistêmica. A grandiosidade da indústria futebolística mundial confirma a proposição.

No Brasil, todavia, a atividade do futebol, por motivos endógenos e exógenos, ainda se encontra em estágio de subdesenvolvimento, apesar da riqueza de seus componentes, o que intensificou a certeza a respeito da necessidade imediata de reformulações - que são resistidas pelos beneficiários do sistema cartolarial, em nome da (falaciosa) defesa da preservação do interesse popular.

O problema consiste no fato de que o continuísmo implica um preço muito alto à sociedade - melhor dizendo, impagável, diante da impotência do povo perante os movimentos indevidos de apropriação e esvaziamento dos cofres públicos -, e atende apenas aos interesses individuais de um pequeno grupo de agentes que se apoderou da coisa coletiva e dela extrai os seus elementos vitais, a ponto de quebrá-la, reiterada e descaradamente, e externalizar os seus efeitos e os seus custos.

Daí porque o debate ético é, neste momento, realmente tão ou mais essencial do que aqueles que embalaram as transformações - e evoluções - promovidas no campo das artes.

Sempre houve uma tentativa de enquadramento político do futebolista. Cabe a ele jogar e se pronunciar sobre temas relacionados ao jogo, conforme padrões invariáveis; quando muito, sua imagem ou opinião serve a propósitos políticos alheios.

Apesar da construção de uma espécie de redoma, o Brasil é relativamente pródigo na geração de atletas que não se sujeitam aos padrões estabelecidos: Tostão, Paulo César Caju, Afonsinho, Sócrates, Casagrande e Paulo André são alguns exemplos.

No plano dos clubes, a subserviência também marca a relação com o poder. Isso quando não se confundem as pessoas que comandam a política clubística para, em benefício próprio, assumirem papeis relevantes nas estruturas de governos.

Esse pacto, que não é benigno, forjou a criação de uma casta que, apesar de integrar, do ponto de vista jurídico, algum órgão estatutário do clube, na prática age de modo parasitário. O futebol e o próprio clube se tornaram, assim, vias de sobrevivência (ou trampolim) para realização dos verdadeiros projetos pessoais de dirigentes.

O estado econômico-financeiro de quase todos os clubes brasileiros é fruto desse modelo que, mesmo em tempos de pandemia, vem sendo defendido; antes de forma dissimulada, agora escancarada e organizadamente, por via política (o PL 2.125/20, recebido dia atrás pela Câmara dos Deputados em caráter de urgência, é o mais novo produto do movimento reacionário).

Não se pretende, com ele, salvar o futebol, os jogadores ou os clubes; luta-se, sem pudor, pela preservação de uma classe.

A mesma classe que se horroriza quando um jogador - uma vez jogador, sempre jogador - e atualmente diretor profissional, rompe com o código de silêncio e se pronuncia sobre temas essenciais à Nação.

A coragem de Raí, ao expor sua opinião em uma sociedade intencionalmente dividida, é inversamente proporcional à covardia dos agentes que pretendem se utilizar do fato para enquadramento não apenas do Capitão - é assim que a torcida do PSG ainda o reverencia, é assim que a torcida são paulina o deve reverenciar -, mas de toda a categoria de jogadores e ex-jogadores. A reação organizada à fala de Raí se dirige, pois, a todos os agentes produtivos que integram o sistema e que pretendem, de algum modo, discutir as suas mazelas e propor modificações evolutivas.

Talvez se esteja presenciando o mais relevante momento na história da política do futebol: ao mesmo tempo em que se avança na perspectiva consolidadora de um projeto reformador e salvador, oriundo das propostas do deputado Federal Pedro Paulo (DEM/RJ) e do senador da República Rodrigo Pacheco (DEM/MG), escancara-se a defesa do mencionado novo projétil de lei2, que, esse sim, tem como propósito o fim da construção de um marco regulatório sustentável e dignificante.

É no meio dessa tensão que a fala de Raí foi proferida; e por causa dela, também, que reações interessadas se articularam e manterão o ímpeto silenciador. Mas a história reservará o devido lugar aos idealistas (e justos) e será implacável com os oportunistas.

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1 V. a propósito.
 
2 A expressão foi cunhada pelo Prof. de Direito da USP, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França.