Clube é clube, empresa é empresa e a SAF não é clube-empresa: diferenças fundamentais entre os modelos em debate no Congresso Nacional
quarta-feira, 18 de setembro de 2019
Atualizado às 10:53
Rodrigo R. Monteiro de Castro e José Francisco C. Manssur
A concepção do clube-empresa não é nova: foi inserida no sistema pela Lei Zico, preservada na Lei Pelé, remendada na Lei do Profut e, agora, no anteprojeto do deputado Federal Pedro Paulo, é apresentada como a solução para a crise sistêmica do futebol brasileiro; isto é, para resolver os (graves) problemas de endividamento e da governação dos clubes.
Não há, porém, motivo para euforia: nessa nova proposta ("Proposta Pedro Paulo" ou, simplesmente, "Proposta") detectam-se os mesmos motivos e os mesmos problemas que justificaram a formulação de todas as leis do futebol, no Brasil, desde a Constituição de 1988. Leis essas que, ressalte-se, foram (ou são) responsáveis pela degradação da economia futebolística.
Pior: mesmo após o fracasso dessas leis que antecederam a Proposta Pedro Paulo, não se prevê, em referida Proposta, a criação das estruturas que poderiam - e ainda podem - formar um novo sistema do futebol e, assim, corrigir os erros do passado.
Trata-se, portanto, de mais um projeto de salvamento de clubes reincidentemente insolventes.
O ponto de partida é o mesmo que motivou a Lei do Profut: um bilionário subsídio estatal, à conta do contribuinte, que arcará com o ônus das gestões amadoras e ineficientes dos clubes brasileiros. A figura do clube-empresa é introduzida na Proposta Pedro Paulo com a finalidade de viabilizar a concessão de novo e agressivo programa de parcelamento de obrigações fiscais, que vem acompanhado de reduções de multas e juros de mora: encargos incidentes sobre tributos que deveriam ter sido recolhidos, mas não foram.
Há, desta vez, um aspecto mais grave e ousado: ao clube endividado será concedida a prerrogativa de fundir-se com empresa existente, que acumule créditos de prejuízos fiscais, os quais serão utilizados para liquidar as obrigações do clube fundido. Além de se tratar de prática questionável do ponto de vista jurídico - daí geradora de insegurança -, e de implicar importante renúncia, pelo Estado, de receitas, criará um mercado paralelo de empresas inativas, que serão precificadas e negociadas apenas para permitir a utilização de seus créditos para fins de redução de obrigações fiscais.
A Proposta Pedro Paulo também indica a criação de um fundo garantidor do futebol, de contribuição obrigatória pelo clube-empresa participante de competição profissional. Funcionará assim: o clube-empresa deverá fazer uma contribuição inicial e, na sequência, realizar contribuições mensais ao fundo, que (i) será gerido por um órgão criado por autoridades competentes e (ii) destinará os recursos arrecadados para socorrer times em risco de insolvência.
O fundo servirá como um mecanismo de premiação de clubes e de dirigentes ineficientes - e, muitas vezes, irresponsáveis -, que gastam o que não têm, à conta de uma coletividade de profissionais, de trabalhadores, de fornecedores e do fisco, e que serão socorridos - ou seja, premiados com recursos advindos de outros times -, em virtude de sua incapacidade gerencial.
Outro pilar da Proposta Pedro Paulo é a construção de uma via jurídica para possibilitar ao clube requerer recuperação judicial: uma prerrogativa que, hoje, no nosso ordenamento jurídico, é concedida apenas ao empresário - algo que, por definição legal, o clube associativo não é.
Esse é um ponto que, de fato, precisa ser revisto; afinal, algumas dezenas de clubes operam e administram empresas econômicas milionárias, mesmo estando organizados sob a forma associativa. Logo, a partir do momento em que se reconhece a natureza econômica (e empresária) da atividade futebolística, a recuperação judicial, como via de manutenção da atividade produtiva, deve ser considerada.
O problema da Proposta, em relação a esse aspecto, está na forma. Adotou-se modelo tortuoso, que exigirá, para sua implementação, malabarismos jurídicos, criadores de ambiente de insegurança jurídica e de distanciamento de investidores. Nele se estabelece que o clube-empresa é sucessor de todas as obrigações do clube. Essa disposição tem um propósito: viabilizar a inclusão de tais obrigações, que foram contraídas por um clube, na recuperação judicial do clube-empresa. Pessoas que contrataram com o clube subitamente passarão a ser credoras de uma outra entidade, com a qual não contrataram e que, como indica a Proposta Pedro Paulo, será utilizada como veículo para negociação do plano de recuperação - e redução dos créditos.
Os autores deste texto já escreveram sobre isso e defenderam, no passado, solução análoga. Porém, após profundos estudos e intensos debates com agentes que também militam na área recuperacional e falimentar, inclusive com juízes especializados, concluíram que esse caminho deverá inviabilizar a ideia de recuperação sistêmica e sustentável.
Há uma forma, porém, para arquitetar um programa consistente e seguro, do ponto de vista jurídico: equiparar a situação do clube praticante de atividade profissional à do empresário (isto é, aquele que exerce atividade de empresa), permitindo-lhe a inscrição no registro público das empresas mercantis e, a partir daí, oferecer ao próprio clube a prerrogativa de recuperar-se.
De todo modo, a ideia da recuperação judicial clubística deve ser inserida em um projeto maior de criação do novo mercado do futebol, como um de seus componentes, mas, jamais, como um favor estatal para o salvamento de times que afundam em seus próprios equívocos - e que já foram salvos antes e provavelmente voltarão a ser resgatados no futuro.
Outro equívoco da Proposta consiste na equiparação (para fins tributários) do clube que não se tornar empresa, a uma empresa. Em relação a essa ideia, é muito importante registrar o seguinte: não se pode tratar os aproximadamente 700 clubes inscritos na CBF da mesma forma. Muitos deles não se viabilizarão como empresas e, com a nova carga tributária que incidirá sobre os clubes, eles não encontrarão meios de preservar a sua existência. A equiparação fomentará, assim, uma (nova) crise sistêmica - e eventualmente social.
Poderíamos apresentar mais uma dezena de aspectos da Proposta que revelam unicamente o propósito de, em mais essa oportunidade, socorrer clubes que já vêm sendo socorridos de modo reiterado, à conta do Estado e do contribuinte.
Por outro lado, não conseguiríamos apresentar qualquer indício de que se pretende, com a Proposta - socorrista e leniente -, criar um novo ambiente, dotado de instrumentos que transformem, enfim, o futebol em uma atividade sustentável.
Aliás, mesmo que se abandonem algumas ideias originais da Proposta Pedro Paulo - como noticiado pela imprensa, em decorrência da resistência dos clubes, o fundo de solidariedade e a equiparação tributária podem ser eliminados -, a sua finalidade não mudará. O ponto de partida restará intocado e, ao final, ainda se correrá o risco de, com enxertos ou retalhos, gerar uma lei "capenga", sem coerência sistêmica.
Enfim, a Proposta Pedro Paulo não arquiteta a construção de um novo sistema (um novo mercado), em que as futuras empresas futebolísticas se desenvolverão dissociadas dos clubes, mediante a captação de recursos privados, detidos e fornecidos por agentes de mercado, que se disponham a empregá-los no futebol, por conta da segurança jurídica e dos instrumentos oferecidos pelo próprio sistema.
Esse conjunto de coisas revela o nítido distanciamento da Proposta Pedro Paulo de outro projeto, convertido no projeto de lei 5.082/2016 ("PL 5.082"), o qual, por sua vez, pretende construir um novo ambiente, um novo mercado sustentável, para viabilizar a recuperação e o desenvolvimento do futebol brasileiro.
Nesse novo sistema, a sociedade anônima do futebol ("SAF") é a via de legitimação, que conferirá segurança jurídica (i) aos clubes que pretenderem passar ao modelo empresarial, e (ii) aos investidores, locais ou estrangeiros, que tiverem interesse em aportar recursos no futebol brasileiro.
Além da SAF, são pilares do modelo proposto pelo PL 5.082:
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um sistema de governança próprio, com a exigência de adoção de níveis elevados de administração, controle e transparência, com a consequente criação de obstáculos ao encastelamento de dirigentes de clubes e à malversação do patrimônio futebolístico. Esse sistema contaria, por exemplo, com (i) a obrigatoriedade de conselho de administração, formado por número mínimo de conselheiros independentes, (ii) a criação de conselho fiscal com membros independentes, (iii) a exigência de que os diretores da SAF sejam profissionais e atuem com exclusividade, (iv) a proibição de que administradores do clube sejam, simultaneamente, diretores da SAF, e (v) a obrigatoriedade de que o investidor pessoa física revele quem ele é, mesmo que invista por meio de uma empresa ou fundo de investimento (ou seja, transparência quanto ao beneficiário final);
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criação de instrumentos de financiamento da atividade futebolística, a fim de que a SAF possa captar recursos disponíveis no mercado local e/ou internacional, para investimento na formação de jogadores, melhorias de suas estruturas, pagamento de dívidas e desenvolvimento de planos de crescimento. O PL 5.082 apresenta, assim, a debênture-fut: valor mobiliário setorial, que serviria para introduzir o futebol no mercado de capitais, possibilitando captação de recursos alternativamente aos financiamentos bancários, subsídios estatais, doações/empréstimos de torcedores e patrocínios;
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um regime tributário transitório, que ofereceria à SAF a possibilidade, durante prazo pré-fixado, de optar entre a sujeição ao regime de tributação convencional das empresas com fins lucrativos e o regime especial, que admitiria o recolhimento mensal e consolidado, conforme alíquota previamente estabelecida, de determinados tributos federais. Note-se que, nesse modelo - que fora apresentado e vetado por ocasião do Profut, aliás -, a SAF recolheria tributos, necessária e obrigatoriamente, com base em sua receita, mesmo que não apurasse lucro; e
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quinto e último pilar, previsto no PL 5.082, o aproveitamento do futebol, atividade que se espalha por todo o território - e que talvez seja o mais poderoso meio de comunicação com o povo - para incentivar a formação de crianças da rede pública de ensino, como plataforma educacional e de inclusão social.
A esses pilares do PL 5.082 se soma a ideia de, conforme indicado acima, autorizar os clubes que atuam profissionalmente a assumirem, de forma espontânea, a natureza econômica e empresarial de suas atividades, permitindo-lhes, assim, passar a se beneficiar do regime da recuperação judicial.
Essas são, enfim, as diferenças entre os modelos em discussão, hoje, no Congresso Nacional. A bola está com os congressistas.