Palmeiras: uma tentativa de explicação do fenômeno Leila Pereira pela ótica do Direito Societário
quarta-feira, 3 de abril de 2019
Atualizado às 07:57
Pouca gente no Brasil observa com atenção os movimentos que ocorrem fora dos campos de futebol. O desinteresse pelo que não seja lance de jogo ou contratação de jogador turva, aliás, a visão da imprensa, dos dirigentes de clubes e da maioria dos torcedores. Mas há situações que merecem ser acompanhadas com lupa (ou telescópio). A do Palmeiras é uma delas.
Proponho, assim, neste breve texto, a realização de uma análise do que se passa naquele clube a partir de um conceito de Direito Societário: o controle, ou melhor, o poder de controle.
Não se trata de um exercício simplório, pois o Palmeiras, como se sabe, é uma associação sem fins econômicos. De todo modo, o empréstimo que se fará dos institutos do Direito Societário permitirá a formulação de uma tese.
Vamos a ela.
A lei das sociedades anônimas identifica como controlador de uma companhia a pessoa que é titular de direitos de sócios (normalmente por meio da propriedade de ações) que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia, e que usa o seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos de administração, inclusive elegendo a maioria dos administradores.
O controlador costuma ser a pessoa que possui pelo menos 50% mais uma das ações com direito de voto. A participação societária relaciona-se, assim, com o tamanho do investimento. Quem investe mais na aquisição (ou subscrição) de ações, tem mais poder, e, se alcançar o percentual mágico, domina e determina a estratégia empresarial e a alocação dos recursos.
O poder na associação sem fins lucrativos, que é caso do Palmeiras, segue, do ponto de vista jurídico-formal, outra lógica: todos os associados têm os mesmos direitos; nenhum deles pode ser privado do direito de voto; e o voto de cada um tem o mesmo peso. A dominação clubística não está associada, formalmente, ao poder econômico. O mais humilde dos associados detém o mesmo valor que o mais abastado dentre todos os demais.
Em tese.
Esse modelo jurídico-formal pode ser negado por dois fenômenos distintos: um político e outro econômico.
A história dos clubes brasileiros de futebol se notabiliza pela prevalência do primeiro sobre o segundo. Daí a coleção de dirigentes que, mesmo sem o emprego de um real sequer para a formação do patrimônio social, souberam dominar e protagonizar o cenário político por longos períodos - eventualmente com a aniquilação de grupos de oposição -, mesmo detendo, cada um desses dirigentes, apenas um voto nas assembleias gerais ou nas reuniões de conselho deliberativo.
O Palmeiras parece inovar em relação a essa matriz histórica. Talvez pela primeira vez em um grande clube brasileiro, o fenômeno econômico se sobreponha ao político - apesar de que, ao cabo do processo, ambos se fundirão, como se indicará abaixo.
E aí se revela a astúcia - vocábulo empregado, aqui, em seu sentido positivo, sem qualquer intenção de se formular uma proposição ética ou moral - da possível controladora do Palmeiras, Leila Pereira. Astúcia que se expressa não apenas pelo controle que exerce sobre os órgãos internos e agentes externos, mas, especialmente, pelo momento em que lançou o seu projeto de dominação.
O ponto de partida é a iluminada decisão do Palmeiras de colocar abaixo um estádio antiquado e inviável esportiva e economicamente, e em seu lugar construir uma arena que contribuiu para recobrar o orgulho de seus torcedores e reforçar o vínculo com o time e com o entorno.
Depois veio um presidente-mecenas, Paulo Nobre, que não poupou energia e recursos para montar times que acompanhassem a expectativa criada com a perspectiva evolutiva da nova arena, e que, além disso, também iniciou o processo de profissionalização da administração.
É nesse quadrante que aparecem Crefisa e Leila Pereira; e se inicia o movimento de dominação.
Inicialmente, com o fluxo de recursos por meio de patrocínio. Depois, com o controverso reconhecimento da posição de conselheira. A seguir, pela articulação e controle do processo sucessório. Na sequência, com o apoio e a eleição da maioria dos membros do conselho deliberativo. E, por fim, com a indicação e a eleição também da maioria dos membros do conselho de orientação e fiscalização.
Aliás, o processo não se encerra por aí: sua influência vai realmente além, extrapolando o ambiente interno, por via do relacionamento estabelecido com a torcida uniformizada - que poderia ser caracterizada como uma espécie de controladora externa -, sob a forma de apoio para organização de desfile carnavalesco.
Esses fatores garantem a Leila Pereira o poder de influenciar a maioria dos votos nas deliberações dos conselhos do Palmeiras e de determinar a condução das decisões administrativas, sem resistência efetiva interna ou externa.
Partindo-se dessas premissas, ela seria, respeitadas as diferenças entre uma associação sem fins econômicos e uma sociedade anônima, a controladora do clube e, assim, do futebol.
Uma controladora que, ao contrário, de qualquer controlador de sociedade anônima, não pagou pelo controle. Sim, pois: patrocínio não é preço, visto que sua concessão implica alguma espécie de contrapartida, como visibilidade, aumento de clientela ou de receita; e empréstimo, por sua vez, haverá de ser devolvido.
O controle que exerce, por outro lado, é precário, justamente por não se fixar na propriedade acionária, e, por isso, pode ser subjugado, se surgir novo fenômeno político que lhe sobreponha ou outro agente econômico que empregue mais recursos para tomar o poder.
Ou seja, para preservação do atual estado de dominação, os fenômenos político e econômico devem convergir (ou se fundir). Em outras palavras, a intensificação da dependência econômica inviabiliza (ou dificulta) a atuação da oposição política, contribuindo para perpetuação do status quo.
Esse processo deverá - ou poderá - atingir o ápice se e quando Leila Pereira, além do controle sobre os órgãos internos, assumir a presidência da diretoria, consolidando, assim, a dominação da associação (que corresponderia, na companhia, ao controle societário) e a dominação das decisões administrativas (correspondente ao controle empresarial).
Eis, enfim, a tese: Leila Pereira controla o Palmeiras sem ter pago pelo controle de uma empresa que vale seguramente bilhões.
Espero que este breve texto sirva para que os agentes que gravitam ao redor do futebol acordem para a sua relevância e a sua potencialidade extracampo - e a ineficiência do modelo atual.
Aliás, o valor intrínseco e extrínseco que o futebol possui justifica, do ponto de vista econômico e empresarial, esse impressionante take over arquitetado por Leila Pereira, e demonstra como o Brasil perde ao desprezar seu mais valioso bem: o futebol.