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Futebol tropical

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Atualizado às 07:31

O movimento modernista, objeto da coluna anterior, influenciou gerações vindouras que, de forma análoga, procuraram formar uma identidade própria, nacional - e não nacionalista -, mas inserida num inevitável ambiente global.

O tropicalismo, apesar de sua independência criativa, preservou a gênese daquelas proposições modernistas: aliás, não se tratava de uma negação; ao contrário, reconhecia e, de certa forma, incorporava a importância de marcos anteriores - como a bossa nova - e não negava as tendências alienígenas, que deveriam, no entanto, passar pela devida tropicalização, contribuindo para formação de um novo padrão estético - e, por que não, ético.

Caetano Veloso reconhece, nesse sentido, que se estava à época "comendo os Beatles e Jimi Hendrix", e que, sobre a função da música brasileira, o "problema" fora equacionado por João Gilberto e não se podia aceitar menos do que "fazer a massa mundial comer o biscoito fino que se fabrica no Brasil".

Essas constatações, longe de revelar uma novidade ou de propor uma crítica, buscam, ao contrário, enaltecer a sua relevância contextual; contexto esse que abrangeu outras formas de manifestação artística além da música, como as artes plásticas, o cinema e a poesia.

Surge, daí, uma legítima preocupação: os dilemas fundamentais não se resolvem; parece, ao contrário, que resistem, eventualmente dissimulados, e se manifestam, periodicamente, com maior ou menor intensidade.

Em Tropicália, Caetano Veloso canta o conteúdo da carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao rei: aqui, as terras são férteis e verdejantes, tudo que nela se planta, cresce e floresce. Essa construção aparentemente ufanista revela, na verdade, uma crítica à máxima que os governos totalitários - ou populistas - tentaram fixar: afinal, com o Brasil, e com o brasileiro, não há quem possa, pois, cedo ou tarde, ocuparão os lugares que lhe foram reservados por disposição divina.

O tropicalismo tratou, com coragem, desse dogma e enfrentou o conservadorismo que reinava na música e no país, sustentando um posicionamento independente, de difícil classificação ideológica, que lhe valeu a perseguição da direita e a incompreensão da esquerda. O agrupamento teve, por isso, curta duração e se dissipou, formalmente, após proibições, prisões e exílios. Porém, do ponto vista material, seu majestoso legado possivelmente se expandirá por gerações: aliás, nem mesmo a pureza do samba da Mangueira resiste à sua influência.

No plano futebolístico, os sinais, durante aquele movimento, foram, aparentemente, contraditórios: se, por um lado, o Estado se apropriava de seus símbolos para justificar a nova ordem política, de outro se operava uma revolução estética, talvez espontânea, que iria, no plano interno, influenciar a forma de se jogar futebol no Brasil até o ano de 1986, e, no plano externo, cultivar o surgimento de métodos - ou escolas - capazes de neutralizar a poetizada superioridade do jogador brasileiro.

Sim, a seleção tricampeã mundial - uma rara combinação de protagonistas aparentemente excludentes -, que começou a se formar no início de 1969, sob o comando de João Saldanha, é um produto involuntário das essenciais preocupações que se apresentaram em Oswald de Andrade e se amplificaram em Caetano Veloso, Gilberto Gil e demais tropicalistas.

O que choca, novamente, é o distanciamento dos futebolistas, em geral, dos grandes temas suscitados naqueles debates; e, sob a outra perspectiva, o desinteresse, por parte dos formadores da moderna cultura brasileira, pelo futebol. Justamente pelo futebol (!), que se apresenta como o principal instrumento de transformação social e econômica - e, talvez, ética e estética - no país.

Os agentes que fabricam o futebol, dentro e fora do campo, viveram - e vivem -, com algumas exceções, num mundo próprio, mágico é verdade, mas isolado de outros temas ou problemas que, queiram ou não, influenciam a produção futebolística. Essa alienação justifica, em grande parte, o modelo imediatista e exportador que prevalece no país.

Assim, de principal referência mundial, símbolo da antropofagia idealizada pelos arquitetos da moderna cultura brasileira, exportador do "biscoito fino" consumido pelas gentes, o esporte caminha para sua consolidação como fornecedor de pé-de-obra e de exportador de jogador em estado bruto.

A revisão desse estado de coisas dificilmente se dará sem que se planeje um novo modelo existencial do futebol brasileiro, uma espécie de ... renascimento moderno-tropicalista, que deverá olhar e ingerir o que se concebeu lá fora, especialmente nos planos da educação, formação e legislação, revisar o que se fez ou pretendeu fazer por estas bandas desde o advento da Constituição de 1988, e transformar essa geleia geral no pilar de sustentação de um ambicioso projeto nacional.