Está tudo errado. Exceto Tite
quarta-feira, 3 de maio de 2017
Atualizado às 07:57
Paulo Francis escreveu que "um dos serviços mais importantes e em muitos casos semi-involuntário (...) que a imprensa presta aos poderes é dignificá-lo (...) porque o simples fato de relatar o que dizem e fazem os políticos (...) dignifica em parágrafos e imagens o que é em geral sandice absoluta". "O jornalista organiza a besteira do político".
O autor disse, ainda, que o ataque confere ao atacado personalidade que não tem. E reconheceu, com imodéstia, que sua pena ajudara muita gente a sair da obscuridade.
Não sou jornalista e o que escrevo não muda a vida de ninguém.
O que me conforta, ao menos em relação ao tema tratado esta semana, é que, quem quer que discorra sobre ele, também não será ouvido por ninguém - mesmo que, formalmente, seja lido.
É impossível falar sobre futebol sem, ao menos esporadicamente, abordar a sua organização política. E quando se fala de política do futebol, o grande - e talvez único - agente, responsável por tudo o que está aí, é a CBF.
Essa é a deixa para tratar de um importante documento, publicado recentemente: suas demonstrações financeiras.
A leitura do relatório da administração, capítulo introdutório do documento, parece querer resgatar aquela afirmação de que a CBF é o Brasil que dá certo. Diz-se, nele, que: "o resultado demonstra de forma clara o esforço continuado da administração da CBF em manter e ampliar os investimentos no futebol brasileiro, mesmo com a crise financeira do Brasil em 2016. A CBF aposta no futebol como um catalisador de investimentos com impactos financeiros e sociais para o país".
Como já se podia supor, o efeito Tite é, de modo oblíquo, envolvido no discurso, mesmo que, em sua apresentação, parte dos resultados não tenha se realizado em 2016 - período a que se referem as demonstrações: "o ano de 2016 foi marcante para a história da seleção brasileira. Pela primeira vez, conseguimos a tão almejada medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Esta conquista é fruto de investimento massivo nas seleções de base, nas novas tecnologias e na preparação para a competição". E aí vem a apropriação de conquista futura, contabilizada nas demonstrações de ano anterior: "a seleção brasileira foi a primeira a se classificar para a Copa do Mundo da FIFA de 2018. A seleção pentacampeã conseguiu a vaga na 14a rodada, sua classificação, com maior antecedência desde a mudança no formato das eliminatórias sul-americanas".
A peça também enfatiza os avanços no plano da governação: "nosso compromisso é estabelecer processos e modelos de governança com aderência às melhores práticas do mercado, sendo reconhecidos como uma entidade que adota os procedimentos mais modernos do mundo corporativo e esportivo". E finaliza: "a administração da CBF reitera seu desejo de encarar os desafios de 2017 com serenidade, mantendo e ampliando o debate participativo e democrático e trabalhando cada vez mais para que o Brasil consolide sua posição de destaque no futebol mundial".
Relata-se um mundo encantado do futebol brasileiro. Nada mais inverídico, porém. Até a chegada de Tite, a situação da CBF, sob qualquer ângulo, era tenebrosa.
Além disso, com poucas exceções, os times brasileiros, de todas as séries, estão atolados em dívidas, não encontram meios de se financiar e se curvam diante de concorrentes organizados e capitalizados, que protagonizam o esporte mundial. Os futebolistas e demais trabalhadores desse esporte enfrentam desemprego, dificuldades para receber seus salários ou se sujeitam a condições muito distantes daquelas oferecidas às poucas estrelas que se destacam em times de elite da série A ou que são exportados para clubes europeus ou chineses.
A verdade é que, por um momento, os times brasileiros tiveram uma grande oportunidade, após o fracasso da Copa de 2014 e a multiplicação dos escândalos envolvendo os dirigentes da entidade, de impor - ou exigir - um novo modelo para o futebol brasileiro.
Nunca, realmente nunca, na história recente do futebol, as oportunidades de transformação foram tão evidentes.
Faltou, talvez, união. Ação coletiva. Abandono de condutas individualistas, em favor de um projeto maior: um projeto de contornos econômicos e sociais magníficos. Ninguém será realmente grande se a grandeza for isolada, não compartilhada e rivalizada.
Atualmente, o discurso pseudo-ufanista, quase sem vergonha de acontecimentos que, se o futebol fosse um tema de Estado (ou ao menos de governo), teriam justificado intervenções ou manifestações públicas contundentes, sombreia condutas alcunhadas, pela imprensa, de maquiavélicas (cf. o jornal Lance!, edição eletrônica de 23/3/17).
Esconde-se, atrás de suposta habilidade política e criatividade jurídica, o desrespeito ao Estado Democrático de Direito. A zombaria, no caso, atingiu o ápice com a atribuição de voto múltiplo às federações estaduais, para que prevalecessem sobre a somatória dos times de primeira e segunda séries, incluídos no colégio eleitoral por determinação de lei Federal que criou o Profut.
Nada mais distante, deve-se registrar, do anunciado processo e modelo de governança com aderência às melhores práticas do mercado. Se esse é o procedimento mais moderno do mundo corporativo e esportivo, como se gaba o relatório da administração, criou-se um mundo próprio, hermético, para justificar todas e quaisquer condutas.
Espanta, nesse processo, o silêncio dos clubes, que poderiam, enfim, dominar a entidade e orientá-la em benefício deles próprios, dos jogadores e demais agentes direta ou indiretamente dependentes do futebol.
A brutalidade parece que foi aceita pela sociedade. Aliás, nem mesmo é digna de reflexão e contrariedade. No plano da política futebolística, infelizmente, ainda se reflete, com força histórica, o verdadeiro Brasil.