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O futebol e o mercado

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Atualizado às 08:26

Resgata-se na coluna de hoje o tema explorado no texto publicado semana passada. O ponto de partida é o mesmo: o projeto de lei 5.082/16, do deputado Federal Otavio Leite (PL 5.082/16), que propõe a criação da sociedade anônima do futebol (SAF) e de um mercado do futebol.

Naquela oportunidade se viu que grupos de interesse que controlam o futebol brasileiro intensificam o dogma de que o modelo que se adota nos principais países praticantes do esporte em alto nível é incompatível com a história, a tradição e a cultura do país. Motivo pelo qual, segundo tais grupos, se deve defender a manutenção do status quo e repelir certas proposições que, na verdade, pretendem abrir caminho ao entreguismo da relíquia nacional.

Essa defesa, cujos argumentos melhor se enquadram em uma espécie de filosofia do absurdo, torna-se ainda mais absurda quando se analisam os resultados alcançados - ou não - pelos donos do poder.

Vejamos algumas referências e certos números.

1. O Brasil deixou de ser a maior potência do futebol mundial; ao contrário, vem encenando recentes e sucessivos vexames históricos.

2. Aliás, nem mesmo o protagonismo regional é capaz de exercer, conforme demonstram os fracassos nas duas últimas edições da Copa América.

3. Seus jogadores abandonam o país muito cedo, sem preparo, formação e condições para enfrentar o duro movimento migratório, malvisto sobretudo em uma Europa que volta a flertar com o nacionalismo - inclusive no futebol.

4. O êxodo decorre sobretudo da impossibilidade dos clubes de se financiarem e investirem na formação, na educação e na manutenção de atletas no país, o que impediria sua coisificação; ou, em outras palavras, sua equiparação, no plano econômico, ao conceito de commodity.

5. O resultado disso é a falta de identificação dos jogadores - e da própria seleção brasileira - com o seu povo. Algo inimaginável, anos atrás, quando movimentos de distintas ideologias se apropriaram ora para justificar o sistema de exceção - e a grandeza do seu povo -, ora para ilustrar e apoiar o fim deste mesmo sistema - e enaltecer as qualidades do mesmo povo.

A lista poderia seguir por páginas e páginas.

Mas se passa da retórica a alguns números, para, na sequência, retomar a importância do PL 5.082/16 e o risco de sua malversação, justamente pelos donos do poder.

1. Os 20 times que jogaram a primeira divisão do campeonato brasileiro de 2015 fecharam o ano com R$ 4,8 bilhões de dívidas. A dívida, 5 anos atrás, não atingia metade dessa cifra1.

2. O Flamengo, time que ostenta a maior torcida do país - e, portanto, que tem o maior mercado consumidor -, fechou 2015 com uma dívida de R$ 546 milhões; Atlético mineiro, com uma dívida de R$ 530 milhões; Corinthians, que carrega a maior torcida de São Paulo e a segunda do país, com R$ 363 milhões; e Internacional, com R$ 259 milhões2.

3. 85 clubes aderiram, em 2015, ao Profut, o programa de modernização da gestão e de responsabilidade fiscal do futebol brasileiro, criado para salvá-los da insolvência. Naquele momento, o montante da dívida dos clubes com o fisco era da ordem de R$ 3,83 bilhões.

4. Não satisfeito em financiar o futebol por meio de parcelamentos, isenções tributárias, redução de alíquotas e perdões de dívidas, o Estado ainda o financia, indiretamente, por meio da injeção de patrocínios da Caixa Econômica Federal a 12 times brasileiros, no valor de R$ 122 milhões em 2016, demonstrando a incapacidade dos clubes de exercerem suas atividades sem alguma forma de subvenção.

5. A receita agregada de 2015 dos 20 clubes que jogaram a primeira divisão foi de R$ 3,6 bilhões (ou 962,8 milhões de euros3 - 4).

6. Enquanto isso, a CBF, protegida por um estatuto privado que lhe confere o monopólio organizacional do futebol no país, apurou, nos anos de 2014 e 2015, receitas de R$ 519 milhões e R$ 518,9 milhões, respectivamente.

7. Do faturamento de 2015, 82%, ou seja, R$ 425,6 milhões, são provenientes apenas da seleção5, revelando o seu desinteresse ou sua falta de capacidade de ampliar receitas com campeonatos, copas ou outras atividades relacionadas aos clubes.

Pegue-se, por fim, uma pequena série de números alcançados por times europeus6 e sua comparação com números dos brasileiros.

1. O Real Madrid apurou uma receita de 577 milhões de euros (R$ 2.157.345.300,00).

2. A receita do Barcelona, no mesmo período, foi de 560 milhões de euros (R$ 2.093.784.000,00).

3. O Manchester aparece em terceiro, com 519 milhões de euros (R$ 1.940.489.100,00).

4. Em quarto surge o PSG, com 480 milhões de euros (R$ 1.794.672.000,00).

5. E, completando o time dos 5 maiores, o Bayern, com 474 milhões de euros (R$ 1.772.238.600,00).

6. O trigésimo time da lista é o Napoli, com faturamento de 125 milhões de euros (R$ 467.362.500,00).

7. Nenhum time brasileiro comparece entre os 30 maiores.

8. A receita da CBF, em euros, a colocaria na 24ª posição, atrás de times como Aston Villa, Southampton, Galatasaray, West Ham United, Internazionale, AS Roma, Atlético de Madrid, Milan, Tottenham e Juventus.

9. A CBF é pouco mais de 10% maior do que o Napoli.

10. O Real Madrid e o Bayern, juntos, são maiores do que os 20 clubes brasileiros que disputaram a primeira divisão do campeonato nacional de 2015.

11. O Real Madrid e o Barcelona são maiores do que os 20 clubes e a CBF, juntos.

Muito bem.

O que a retórica inicial e os números apresentados indicam?

A resposta é muito simples: o modelo brasileiro está esgotado. E ainda resiste apenas pelas ações políticas de um pequeno grupo de interesse que defende o seu próprio interesse. Não do futebol. Não dos times ou dos jogadores. Muito menos do torcedor.

E que, por isso, recusa o debate sobre novos métodos de administração do esporte.

Mas que, aparentemente, não hesita em se aproveitar de instrumentos de mercado, previstos e sugeridos no próprio PL 5.082/16, para reforçar o modelo existente e os seus interesses.

É o que se extrai, por exemplo, da proposta de se estender aos clubes, organizados sob a forma de sociedades civis sem fins lucrativos, sujeitos a uma lógica associativa e amadora, com um sistema de governança que acomoda interesses de todas as áreas de prática esportiva e congregações sociais, o direito de emitir valores mobiliários, títulos de dívida e outros, para financiamento de suas atividades.

Quer-se, com isso, a manutenção da arcaica modelagem que levou o futebol brasileiro à situação que se ilustrou acima e, ao mesmo tempo, o acesso a recursos financeiros - disponibilizados às empresas que se submetem a um regime jurídico distinto e que se regem por lógicas empresariais - com o propósito de manutenção e intensificação deste estado de coisas.

Não é correto. Não é aceitável. É um absurdo.

Ou se admite que o futebol é uma atividade de interesse público, a ser financiada pelo Estado - por meio de diversas técnicas, como isenções, renúncias, perdões, parcelamentos ou patrocínios - e praticada por entidades não econômicas - e se assume a condição de coadjuvante no ambiente global -; ou se reconhece que o Brasil carece de um modelo que lhe permita financiar a formação, a manutenção e o desenvolvimento do futebol, a exemplo da SAF, prevista no PL 5.082/16, e se parte para sua regulamentação e implementação (assim como ocorreu em países como Portugal, Espanha, França, Itália, Áustria, Alemanha, Inglaterra, México, Colômbia e Chile).

A SAF, é sempre bom ressaltar, deve se submeter a um novo sistema, um ecossistema sustentável, transparente, profissional e que realmente reconheça o futebol como bem cultural e, ao mesmo tempo, como atividade de enorme viabilidade econômica.

__________

1 Cf. Capelo, Rodrigo.

2 Idem.

3 Conforme taxa de cambio de fechamento do dia 27/6/16, de R$3,7389, adotada em todas as conversões realizadas neste texto.

4 Em ordem decrescente de faturamento: Cruzeiro, Flamengo, Palmeiras, São Paulo, Corinthians, Internacional, Atlético Mineiro, Grêmio, Vasco, Fluminense, Santos, Atlético Paranaense, Sport, Coritiba, Goiás, Ponte Preta, Figueirense, Chapecoense, Joinville e Avaí. Cf. Capelo, Rodrigo.

5 Capelo, Rodrigo.

6 Deloitte.