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A contribuição do Judiciário na regressividade da matriz tributária brasileira

sexta-feira, 31 de março de 2017

Atualizado em 30 de março de 2017 13:46

Júlio César Marques

Conquanto o Legislativo e o Executivo sejam poderes diretamente encarregados das principais funções tributárias, dado que são responsáveis pela elaboração de leis e políticas de alocação e redistribuição de recursos públicos e estão investidos nas atribuições arrecadatórias, também o Judiciário apresenta relevante peso na configuração da ordem tributária, particularmente pelo papel que desempenha no controle de constitucionalidade das leis.

Na realidade brasileira, em que a tributação é exaustivamente disciplinada na Constituição Federal, não raro o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão de cúpula do Poder Judiciário, é chamado a se posicionar sobre questões tributárias e, nessa posição, ocasionalmente chancela injustiças e apresenta entraves à equalização igualitária do sistema que repercutem na própria cidadania fiscal.

Por certo, tanto quanto um mecanismo para angariar recursos econômicos necessários ao fornecimento de bens e serviços públicos, a tributação é também um instrumento político e um meio de pôr em prática um modelo de Estado e de Justiça em uma democracia1.

A legitimidade e a Justiça da atuação fiscal perpassam necessariamente por considerações acerca da equidade e da eficiência da matriz tributária adotada2, do adequado e isonômico tratamento reservado aos contribuintes, do respeito da dimensão da liberdade individual, da reflexão sobre o tipo de sociedade, democracia e instituições que se pretende ter3.

Nesse caminho, uma matriz tributária politicamente comprometida com os ideais republicanos e democráticos se afina tanto com a contenção do ímpeto estatal e com a garantia de direitos fundamentais, quanto se engaja com a qualidade da arrecadação e com os efeitos sociais da tributação e das ações governamentais empreendidas por meio e com os recursos arrecadados (alocação, redistribuição e incentivos econômicos positivos ou negativos).

Tomadas essas concepções, verifica-se a incongruência da atividade fiscal do estado brasileiro (pelo viés da arrecadação e também dos gastos públicos) com os objetivos de justiça social e o ideal igualitário declarados na própria Constituição de 1988, bem como o descompasso em relação aos princípios constitucionais estruturantes da função tributária (capacidade contributiva, legalidade, segurança jurídica, transparência).

O fenômeno tributário é amplo, mas uma breve avaliação da capacidade contributiva e do modo de concretização do princípio pelas instituições de estado, entre as quais o STF, exemplificam o ponto.

Com efeito, a capacidade contributiva é um postulado de igualdade que orienta a tributação segundo a capacidade econômica e a possibilidade individual de arcar com o encargo tributário em função dos recursos que a pessoa manifesta. Desdobra-se em um aspecto objetivo e outro subjetivo4: de um lado, determina que a tributação ocorra apenas diante de situações que revelem e denotem de forma objetiva algum tipo de riqueza apta a suportar o encargo tributário por quem realiza um ato ou se encontra em determinada situação; na segunda perspectiva, estabelece que a tributação se realize de acordo com a possiblidade econômica pessoal de cada um concorrer com a manutenção da coisa pública, inclusive de modo progressivamente maior em função da maior capacidade econômica/maior expressão da riqueza pessoal.

Com fundamento na aproximação objetiva da capacidade contributiva, a Constituição Federal de 1988, de modo a conferir a cada unidade da federação meios de obter recursos financeiros próprios, discriminou a competência tributária da União, estados e municípios e autorizou-os a instituir e cobrar impostos sobre renda, consumo e patrimônio5. De outra parte, com base na aproximação subjetiva, determinou modulação da carga individual, sempre que possível, segundo a capacidade individual do contribuinte.

Mas, apesar da amplitude de bases econômicas sujeitas a tributação, o estado brasileiro confere primazia à arrecadação sobre consumo (indireta), em detrimento da tributação (inclusive progressiva) do patrimônio e da renda (em princípio direta e mais alinhada com a capacidade contributiva subjetiva). Dessa forma, determina um comportamento regressivo da carga tributária global, dado que onera proporcionalmente mais a parcela da população com menos recursos econômicos6. Inclusive, a medida vai na contramão da capacidade contributiva subjetiva desses contribuintes e de um sistema mais igualitário, colaborando ainda para um verdadeiro ciclo de concentração de renda, que estigmatiza e põe em xeque a matriz fiscal brasileira.

Nesse particular, o Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal, acaba por colaborar com o quadro de regressividade da nossa matriz tributária.

Assim, por exemplo, por longo tempo, o STF, a partir de debates nascidos de impostos incidentes sobre a propriedade imobiliária (IPTU e ITBI7), foi refratário ao reconhecimento da progressividade de impostos incidentes sobre o patrimônio com fundamento em questionável dogmática que distingue os tributos em reais e pessoais8. Para tanto, seguia entendimento de que os tributos reais, enquanto tomam por parâmetro coisas e não pessoas, não poderiam ser progressivamente majorados, sem que para tanto houvesse maior reflexão e aprofundamento sobre o alcance da ideia de capacidade contributiva subjetiva.

Em 2013, porém, o STF guinou no sentido da aceitação da constitucionalidade da progressividade de tributos de natureza real, prestigiando o princípio da capacidade contributiva, em julgamento acerca do imposto sobre heranças e doações (ITCMD) do estado do Rio Grande do Sul9.

Outra situação emblemática é a proibição da tributação de embarcações e aeronaves pelo imposto estadual sobre veículos automotores (IPVA), reavivada recentemente pelo Ministério Público Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5654, fundamentada em precedentes do STF10 que praticam uma interpretação que limita o sentindo da expressão "veículo automotor" a veículos de circulação terrestre, embasada em uma vinculação do atual IPVA à antiga Taxa Rodoviária Única (TRU, instituída nos idos de 1969) e na submissão da competência tributária constitucional (art. 155, III) à lei ordinária, no caso, ao Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

Nesse caso, interpretação dessa ordem afronta a força normativa da Constituição em múltiplos aspectos: ignora que a competência é outorgada segundo fatos indicadores de capacidade econômica (capacidade contributiva objetiva), de modo que "veículo automotor" remete a "veículo que circula pelos seus próprios meios", como, por exemplo, motor a propulsão; vincula a ordem constitucional atual às leis ordinárias do passado; e subordina a competência constitucional à lei ordinária (CTB), em inescapável inversão normativa.

Mas, ao passo que imuniza o patrimônio, o STF não apresenta maior preocupação com a tributação sobre o consumo, como ocorreu, por exemplo, com o cálculo por dentro do ICMS, mecanismo que permite que o imposto integre a sua própria base de cálculo, em verdadeira tributação em cascata que gera uma distorção pouco transparente entre a carga fiscal nominal e a efetivamente paga, em prejuízo a fornecedores e consumidores de bens de consumo, chancelada em diversas ocasiões pela Corte e reiterada em julgamento de repercussão geral em 201111.

Esses exemplos são tópicos. Mas, apesar da complexidade do fenômeno tributário, lançam luzes sobre o papel que o Poder Judiciário desempenha no comportamento da carga tributária no Brasil, e, reflexamente, nos quadros de desigualdade e de concentração de riqueza que refletem estruturalmente na sociedade, na política e na economia.

Certamente, uma multiplicidade de atores, fatores e causas concorrem para a injustiça da tributação no país, mas, ainda que incipientemente, a reflexão sobre a interferência e controle exercidos pela atividade jurisdicional e o grau de profundidade com que a instituição trabalha o princípio da capacidade contributiva colaboram no esclarecimento sobre a inequidade e ineficiência da matriz tributária brasileira.

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1 MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005

2 GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o estado, a constituição e a tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (org.). Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: diálogos sobre estado, constituição e direito tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 27-50

3 A propósito, vide DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Principles for a new political debate. Princeton-Oxford: Princeton University Press, 2006, p. 90-126

4 COSTA, Regina Helena. Princípio da capacidade contributiva. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1995

5 E o fez por meio da descrição de situações econômicas que manifestam o montante de recursos que a pessoa percebe com o exercício de seu ofício ou a exploração de seus bens, os bens e serviços que consome e o conjunto de bens e direitos que acumula e titulariza. A respeito, vide LAGEMANN, Eugenio. Tributação: seu universo, condicionantes, objetivos, funções e princípios. In GASSEN, Valcir (organizador). Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira - Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Editora Consulex, 2012, p. 51-70

6 BRASIL. Presidência da república, Observatório da Equidade. Indicadores de Iniquidade do Sistema Tributário Nacional. Brasília: Presidência da República, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES, 2.ed. 2011

7 Vide súmulas 589, 656 e 668/STF

8 Classificam-se os impostos em pessoais ou reais em razão da predominância de características subjetivas ou objetivas do fato gerador, "se o tributo leva em consideração aspectos pessoais do contribuinte (nível de renda, estado civil, família etc.), ele se diz pessoal; real será o tributo que ignorar esses aspectos" (AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 111). Tem-se ainda que impostos pessoais referir-se-iam a pessoas, e impostos reais a coisas (CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 542).

9 RE 562045

10 RE 134509 e RE 379572

11 RE 582461

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*Júlio César Marques é bacharel em Direito pela UnB. Advogado. Membro do Grupo de Pesquisa Estado, Constituição e Tributação da Faculdade de Direito da UnB (GETRIB - FD/UnB).