CPF na nota?
sexta-feira, 15 de julho de 2016
Atualizado em 14 de julho de 2016 11:03
Na maior parte dos Estados e no Distrito Federal foram implantados os programas de "concessão de créditos para adquirentes de mercadorias ou tomadores de serviços". Trata-se de modalidade de incentivo fiscal aos consumidores que, para obterem o benefício, deverão auxiliar na fiscalização da arrecadação do ICMS de competência dos Estados. Considerando que o Distrito Federal também possui competência para instituir os impostos municipais, o programa atinge também o ISS, imposto exigido do setor de serviços.
Os programas consistem na concessão de créditos que poderão ser utilizados como abatimento da base de cálculo de impostos de competência desses entes federados. Às vezes, o crédito poderá ser pago em dinheiro, mas constitui uma pequena parcela do imposto pago no consumo. Dito de outro modo, não se trata de restituição integral do imposto ao consumidor, o que, evidentemente, não faria nenhum sentido. No caso das deduções, por exemplo, o contribuinte do IPTU ou do IPVA, na condição de consumidor, poderá acumular determinado montante de créditos que fica registrado nos cadastros da Fazenda Pública. Na oportunidade dos lançamentos de tais impostos, o valor dos créditos é deduzido da base de cálculo do IPTU ou do IPVA, resultando em um valor menor de imposto a pagar. Para fazer jus aos créditos, o consumidor deverá exigir, em contrapartida, nota fiscal com anotação do seu CPF nas compras ou recebimento de serviços que realiza perante os estabelecimentos credenciados. Ao exigir a nota fiscal, o consumidor auxilia na fiscalização dos impostos incidentes sobre o consumo (ICMS e ISS), pois o fornecedor é obrigado a registrar a saída da mercadoria ou a prestação do serviço, o que constitui fato gerador dos mencionados impostos.
A anotação do CPF na nota fiscal é importantíssima, pois sem isso não há como a Fazenda anotar o crédito do consumidor para as futuras devoluções ou deduções. Daí a pergunta mais frequente do comércio hoje em dia: "CPF na nota"?
Nos anos oitenta, no Estado de São Paulo, houve iniciativa pioneira até onde eu sei. Tratava-se do "Programa Paulistinha". Resumidamente, o programa consistia na exigência de nota fiscal no comércio varejista pelo consumidor final. Para cada conjunto de notas até determinado valor, o consumidor poderia trocar as notas fiscais por um álbum de figurinhas do personagem "paulistinha". Claro que o programa tinha um fiscal eficientíssimo, que era a garotada, ávida por preencher o álbum ou por acumular figurinhas para rodas de troca ou brincar de "bafo". Diz a lenda que o Estado nunca arrecadou tanto ICMS como naqueles idos. E olha que, na ocasião, não existiam máquinas de caixa computadorizadas e nem sistemas on line para lançamento de CPF (que, na época, se chamava CIC). Mas isso faz parte do passado. No presente, os programas conseguem assegurar, pelo CPF, alguma pessoalidade em relação ao consumidor. No limite, poderiam até cruzar dados entre a Receita Federal e a estadual para saber o perfil de renda do consumidor, com base no artigo 199 do CTN1.
Embora com esses sistemas a Fazenda estadual ou distrital possa arrecadar menos IPTU ou ICMS, não há dúvidas de que tais programas contribuem para a eficiência da arrecadação, caso contrário teriam sido extintos. Em tempos de crise financeira no setor público, não perder receita em razão da sonegação fiscal é um imperativo de que nenhum governo pode abrir mão.
A confirmação dessa hipótese de eficiência arrecadatória vem acompanhada do próprio sistema legal de gestão fiscal a que os entes federados estão obrigatoriamente vinculados. O artigo 14, da Lei Complementar 101, de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), estabelece uma série de exigências para a concessão de incentivos fiscais que se resumem na ideia de que não pode haver perda de arrecadação. Assim, se por um lado cai a receita de IPTU e de IPVA, por outro, aumenta a arrecadação de ICMS e ISS. Chega a ser intuitiva a vantagem da Fazenda com tais programas: enquanto que, para cada cem habitantes podem existir vinte proprietários de imóveis ou de veículos, cem por cento dos habitantes são consumidores. Daí por que os programas em questão significaram um avanço em matéria de eficiência de arrecadação dos tributos sobre o consumo, facilitados pela tecnologia. A pergunta "CPF na nota"?, na verdade, é a comprovação de que o consumidor portador do CPF atuou como fiscal dos impostos sobre o consumo e por essa atuação será recompensado com créditos ou descontos em outros impostos. Ao mesmo tempo em que, como consumidor, sofre a repercussão de maior eficiência arrecadatória, nessa mesma qualidade também é agraciado com incentivos e descontos de tributos sobre a propriedade.
É exatamente essa relação que pretendo trazer à tona para algumas reflexões, tendo como pano de fundo a ideia de Justiça tributária, com foco na equidade ou igualdade material entre os consumidores.
Na teoria econômica, dois princípios norteiam a tributação: princípio do benefício e princípio do sacrifício igual ou sacrifício comum. No primeiro caso, imita-se a lógica do mercado para justificar a tributação. Assim, o contribuinte somente seria obrigado a pagar determinado tributo se recebesse algum benefício direto do poder público. No mercado esse é o princípio: somente se paga o preço do produto mediante o recebimento da mercadoria. Tal princípio prevaleceu entre os séculos XVII e XVIII, mas logo se percebeu que não daria respaldo às complexidades das relações econômicas que avançavam rapidamente nesse período. O outro princípio foi concebido para dar respostas às insuficiências do princípio do benefício. No sacrifício comum, todos serão obrigados a custear a burocracia estatal com o pagamento de tributos, especialmente os impostos que tradicionalmente se destinam a manter o estado. As razões que motivaram a formulação de tal princípio desde Adam Smith, e que ganharam força com os escritos de John Stuart Mill, fundavam-se no entendimento de que, no estado tipicamente liberal e abstencionista da época, a aristocracia era mais beneficiada com as proteções do estado à liberdade e à propriedade do que a plebe. Não era difícil intuir que a burguesia rica teria que contribuir com mais tributos em relação aos pobres. A questão controvertida à época era saber qual o parâmetro para essa contribuição. Logo se percebeu que os ganhos auferidos seriam a melhor base para uma tributação que levasse a cabo o princípio do sacrifício igual. Quanto maiores fossem os ganhos, maior seria a parcela de contribuição.
Até hoje a tributação não foge muito dessa lógica. Quando se trata de tributar a renda, a legislação estabelece alguns critérios que visam a individualizar o imposto, embora não se consiga um nível absoluto de precisão nessa individualização. A adoção de alíquotas progressivas no imposto de renda, procura discriminar as capacidades contributivas das pessoas, tributando-se com alíquotas mais altas os contribuintes de maior renda. O problema da falta de individualização e de inaplicabilidade da capacidade contributiva subsiste nos impostos sobre o consumo, porquanto no ato da compra não há como se aferir a renda individual do consumidor.
Assim, ricos e pobres são tributados igualmente sobre o consumo por questões de dificuldade prática, mas não exatamente por algum óbice teórico. Esse modelo tem levado a distorções espantosas. As estatísticas apontam que as pessoas com renda de até dois salários mínimos comprometem 53,9% de sua renda com pagamento de tributos, certamente os que incidem sobre o consumo, porque com uma renda de dois salários é difícil supor aquisição de imóvel ou de veículos. Quem ganha mais de trinta salários mínimos, compromete de sua renda somente 29%, incluindo nesse cálculo a tributação sobre consumo, renda e patrimônio.
O que isso tem a ver com os programas de concessão de crédito? A resposta decorre do modelo de tributação prevalecente no Brasil em toda sua história, em que as parcelas economicamente mais favorecidas da população são sempre mais beneficiadas com a política tributária. Note-se que quem tem mais capacidade contributiva para transferir sua renda ao consumo, logicamente, terá mais créditos para serem restituídos ou abatidos do IPTU ou do IPVA. Os consumidores de baixa renda, além de quase não terem créditos a restituir em tais programas, normalmente não têm imóvel próprio ou veículos para abater do pagamento de tais impostos.
Percebe-se, portanto, que o princípio do sacrifício igual penaliza os mais pobres pelo simples fato de consumir (em geral, produtos básicos para a existência) e suaviza os efeitos econômicos da tributação do consumo em favor dos mais ricos. Além de serem proporcionalmente menos onerados em sua renda total, as pessoas de elevado poder aquisitivo ainda podem restituir mais créditos da renda empregada no consumo, ou reduzir o montante de impostos sobre a propriedade, tudo isso em função do "CPF na nota".
Não me oponho aos programas de concessão de incentivos, mas não concordo com uma política tributária que agrida as ideias de Justiça, equidade e igualdade na tributação a pretexto de aumentar a eficiência arrecadatória. O modelo em vigor amplia a abissal desigualdade econômica do país e dá seu discreto incentivo à concentração de renda.
Se for para se manter tais programas, medidas protetivas da renda empregada no consumo dos mais pobres também deveriam ser implantadas. Quem sabe aproveitar os cadastros fazendários para conceder isenções totais ou parciais para o consumo de gêneros básicos? Tal medida deveria favorecer quem ganhasse abaixo da faixa de isenção do IR ou outro valor a ser estudado. Não se trata de isenção para todos, mas para quem compromete quase metade de sua renda com pagamento de tributos, para compensar a desvantagem em face de quem compromete menos de um terço de sua renda com tributação.
Em tempos de tanta tecnologia utilizada em favor da eficiência arrecadatória, talvez fosse oportuno pedir o "CPF na nota" para criar um sistema que contribua com a ideia de uma tributação mais justa e igualitária. Se não der ou se não há interesse político em se lutar por Justiça tributária (o que eu, sinceramente, não acredito, é que às vezes quem faz a lei esquece desse pequeno detalhe), talvez seja melhor voltar ao modelo da "paulistinha", que se não dava descontos no IPTU ou no IPVA da classe média e alta, ao menos servia para entreter a molecada, numa época sem internet, computadores, sistemas on line e "CPF na nota".
Cleucio Santos Nunes é doutorando e mestre em Direito. Professor e advogado.
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1 CTN: Art. 199. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestar-se-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.