Vamos aproveitar o que resta das ruas
quinta-feira, 20 de março de 2025
Atualizado em 19 de março de 2025 14:58
Em texto anterior descrevi as minhas emoções e sensações ao lembrar-me do centro de São Paulo, o chamado centro velho. A Praça da Sé e adjacências marcaram não só as minhas recordações como moldaram a minha personalidade. Foi nessa região de São Paulo que eu desenvolvi as minhas atividades profissionais como advogado e pude também criar os primeiros elos de sociabilidade com a comunidade jurídica.
Anteriormente, eu já pertencia a um núcleo social, constituído pelos amigos da Rua Stella e por todas as figuras que povoaram as minhas infância e juventude.
Esses dois grupos ainda existem, embora desfalcados pelas perdas, e permanecem nutridos pelas recordações e renovados pelos sonhos.
O que nos possibilitava ficar agregados eram as ruas. Embora frequentássemos as casas, os prédios públicos, os bares e restaurantes, era nos espaços abertos, ruas, praças e avenidas, que nós nos congregávamos
Infelizmente, constata-se hoje que estamos perdendo as ruas. Aliás, já é antigo esse processo de desaparecimento desse magnífico meio de sociabilidade.
A violência instalada nas cidades se projeta nas ruas, tornando-as locais a cujo acesso se dá apenas quando inevitável.
Outro fator de exclusão das ruas foi o automóvel, que nos leva de um ponto a outro sem que tenhamos que andar pelas vias públicas.
Na realidade as pessoas estão evitando as ruas. Infelizmente elas estão gerando insegurança, medo. Em muitos bairros, embora o número de automóveis seja menor, as ruas se tornaram apenas locais obrigatórios de passagem. Ninguém mais nelas permanece.
Nem sequer há mais o tradicional "dedo de prosa". Ele havia se tornado costumeiro nos percursos entre a casa e os pontos de condução.
Um outro hábito que foi desprezado foi a conversa nos jardins e nas janelas. A culpa foi da verticalização das cidades. Foram-se as casas, vieram os apartamentos. Pessoas que ficavam nos seus jardins ou nas suas sacadas prontas para um papo com vizinhos ou transeuntes se viram confinadas e isoladas em seus edifícios. Decretou-se o encarceramento em liberdade.
As ruas permitem que saiamos de nós para entrar em contato com a realidade, ao menos parcial, que nos cerca. O contato com as ruas e com as pessoas nos retiram do ensimesmamento que o estar só provoca e nos mostra ou relembra aspectos da vida desconhecidos ou esquecidos. As ruas escancaram nossos olhos e mentes para o mundo.
Mesmo nesses tempos difíceis para se usufruir das ruas, não nos esqueçamos que elas são representadas por todos os espaços nelas contidos: praças; jardins; bancos; ruelas; vilas; os seus bares com mesas nas calçadas; padarias; jornaleiros; engraxates; pontos de taxis; metrô; ônibus. Tudo isso e muito mais são ruas, saibamos aproveitá-las.