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Adoniram Barbosa: Espelho de São Paulo

terça-feira, 26 de março de 2024

Atualizado às 08:13

Houve época em que o coração do paulistano pulsava de orgulho, com maior intensidade, quando chegava ao marco zero de São Paulo, a Praça da Sé. De lá se irradiavam todas as ramificações de uma cidade pungente, possuidora de um esplendor crescente em todas as áreas das atividades humanas.

Ela abrigava a Catedral e, no seu entorno, estavam os tribunais e fóruns do Poder Judiciário: a faculdade do Largo de São Francisco; a Câmara Municipal; a Prefeitura; anteriormente a Assembleia Legislativa, e um intenso comércio que atendia a todas as necessidades de consumo da população. Não havia shopping centers.

A Praça da Sé ainda continha o quarteirão que abrigava o Edifício Santa Helena, destruído na década de setenta, por razões até hoje não bem claras. Todo o quarteirão veio abaixo para que a Praça ficasse unida a uma outra, a Clóvis Bevilaqua. Não só os prédios foram derrubados, mas a história ruiu, uma história voltada para as grandes atividades culturais de São Paulo, que ainda poderia estar sendo escrita. Vem-me à lembrança a enorme contribuição dada pelo chamado Grupo Santa Helena às artes plásticas. Volpi, Rebolo, Pennacchi, dentre outros, mantinham os seus estúdios no citado Santa Helena. Lá havia um teatro e um cinema. Um pouco acima, em uma rua transversal, a Felipe de Oliveira, Monteiro Lobato possuía escritório, sede de sua editora.

Palco de manifestações cívicas desde sempre, a nossa Praça também era o observatório de um dos maiores compositores brasileiros, Adoniram Barbosa. Foi ele na verdade um extraordinário expositor dos nossos hábitos e costumes, pois soube captar com perfeição aspectos e nuances marcantes do povo paulistano. A sua atenção voltava-se em especial para os habitantes de origem italiana e para aqueles desprovidos de melhores condições de vida.

Certa manhã, eu vi Adoniram em cima das escadarias da Sé, observando as centenas de transeuntes que se entrechocavam. Já narrei esse fato. No entanto, hoje o menciono porque me ocorre uma observação não referida anteriormente. A permanência do compositor nas escadas da Catedral, além de poder inspirá-lo como músico, dava-lhe ensejo de olhar o povo. A partir do mero olhar, imaginar e analisar todo um conjunto de sentimentos e emoções que habitam e movem milhares de seres.

Há pessoas que sem estudo específico possuem uma inata vocação para desvendar a alma e a mente humanas. Observadores astutos conseguem decifrar o que se passa no íntimo do outro. Dotados de inteligência intuitiva, perspicácia e o chamado sexto sentido por vezes erram nas análises que fazem, mas, em regra, conseguem retratar com fidelidade a vida de pessoas, especialmente as marcadas por dificuldades imensas, em estado quase de penúria, mau relacionamento interpessoal, tragédias de um cotidiano árido e sofrido.

Essa realidade foi exposta em suas músicas com graça, leveza e irreverência, fruto de uma vida intensamente vivida que ele transpôs para a sua arte, não só na música, como no cinema, no teatro e na rádio.

Eu pretendo, nos próximos escritos, focar algumas dessas composições que encerram preciosas lições de sociologia e de psicologia e, acima de tudo, expõem um acendrado amor pela cidade de São Paulo, por seus bairros e por seu povo.