Reação musical
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024
Atualizado às 07:39
Há mais de dez anos abordei o assunto em um despretensioso escrito. O tema era a interferência da língua estrangeira, sobretudo o inglês, em nossa comunicação cotidiana.
Volto a mencionar esse nosso vício, pois ele ainda persiste. Continuamos a praticar essa incompreensível "macaquice", que nada mais significa do que um profundo desapreço pelas nossas coisas, especialmente língua pátria.
Um dos setores que mais usam palavreado estrangeiro, em substituição ao correspondente vocábulo pátrio, é aquele responsável pelo anúncio e publicidade de produtos de qualquer natureza. Os folhetos, cartazes, faixas, veiculam, inclusive na imprensa escrita, falada ou televisionada palavras e frases em línguas de fora em detrimento da nossa. Em verdade, esse cacoete nacional representa uma sensação de inferioridade que secularmente nos acompanha. À guisa de ilustração, nas ruas de uma cidade do interior, encontra-se escrita a expressão STOP ao invés do nosso PARE.
Até na pia batismal essa tendência se diz presente. Basta que se observe o nome dado a alguns jogadores de futebol, Richardson, Welington, Cleverson, Washington e tantos outros em substituição aos nomes genuinamente nacionais e aos saborosos apelidos que tornaram conhecidos grandes craques, notadamente do passado quando o mau hábito não era adotado: Pé de Valsa; Cabeção; Diamante Negro; Pequeno Polegar e outros.
Eu indago qual teria sido a motivação dos pais ao escolher esses nomes ? Será que imaginam que ao fazer essas escolhas estariam garantindo o sucesso aos filhos em suas futuras atividades. No caso do futebol deveriam saber que o êxito estaria nos pés e não nos nomes.
A música popular brasileira como fiel retratista de nossa realidade não poderia mesmo deixar de registrar essa deplorável deturpação, essa inexplicável agressão ao nosso idioma. E o fez por meio de grandes compositores e cantores como forma de reação ora hilária, ora mais contundente, mas sempre com muita força e poder de penetração social.
O compositor Assis Valente deixou claro em sua "Tem Francesa no Morro" que a francesa é bem recebida mas deve "Entrê na virada e fini pur samba". A sua mensagem mostra que aceitamos o estangeiro desde que ele se adapte à nossa cultura. A música inclusive conclama a francesa a frequentar a macumba "Si vu frequente a macumba". Trata-se propositadamente de uma letra sem muito nexo, exatamente para mostrar que a mistura dos idiomas não espelha pensamentos lógicos.
Nessa mesma linha encontramos uma composição de Lamartine Babo, "Canção para Inglês Ver", na qual com o seu refinado senso de humor o compositor mostra o "non sense" que resulta do uso desnecessário de expressões inglesas.
Em uma outra melodia, "Good Bye" , o mesmo Assis Valente coloca o homem simples a falar inglês , sem ter a mínima noção do que fala. Por tal razão o aconselha a abandonar a "mania do inglês" pois "fica feio para você mulato frajola que nunca frequentou as aulas da escola" . Ainda segundo a canção, hoje não é mais bom dia nem boa noite "e sim good morning e good night". No entanto, na voz de Carmen Miranda a música assume um compromisso com a nossa língua : "ensinaremos cantando a todo o mundo be e bê, bi i bi e b-a-ba" antes que a vida se vá" .
Noel Roa não ficou insensível ao avanço dos estrangeirismos. Compôs o "Não Tem Tradução" onde verbera o uso do inglês, dizendo que as rimas do samba não são "l Love You" e que o "alô boy, alô Jony só pode ser conversa de telefone".
A reação musical somada à valorização da cultura nacional nos campos das artes plásticas e da literatura representaram uma quebra dessa tendência adventícia. No entanto, há dois setores que foram impregnados pelo estrangeirismo e dele não se desprenderam : o da publicidade e o das músicas tocadas em festas, casamentos e recepções, onde se ouve em regra somente melodia americana.