Leite de cabra e outros leites
quarta-feira, 27 de setembro de 2023
Atualizado às 07:42
Em verdade, minha intenção não é escrever sobre o leite, nem sobre os seus predicados nutricionais e obviamente sobre a pecuária do leite. Quero me referir a um tipo de leite, o de cabra e o sobre aqueles que vinham em garrafa e eram ou comprados nos armazéns ou postos no portão das casas.
Mas, devo esclarecer que a menção que faço ao leite é para tê-lo como gancho de um outro tema que parece não guardar nenhuma relação com o leite. Como se verá guarda sim. O tema de fundo é a sociabilidade provocada pelas entregas e serviços feitos nos domicílios de antigamente. Além do leite, os jornais eram entregues. As casas eram visitadas pelo tintureiro, pela lavadeira, encanador, marceneiro, chaveiro, limpador de vidros, eletricista, engraxate que ia buscar e entregar os sapatos o afiador de facas, o consertador de panelas e outros prestadores de serviços fundamentais.
As minhas lembranças ficaram marcadas por cada um deles que nos atendiam na rua Cubatão, na Vila Mariana, onde morávamos. Alguns se tornaram amigos de casa, figuras incorporadas não só nas nossas lembranças como nas nossas memórias afetivas.
O leite de cabra não me marcou nem pela senhora que conduzia o animal e nem pela cabra. Mas sim pelo leite, por isso o título. Ah! O leite. Espumoso, quente, sim saia quente. Não pensem que era fervido, não. Saia quente da generosa cabra, diretamente para o copo. Tinha um sabor característico, inigualável. Era gorduroso, isso é verdade. Mas, e daí?
Falo do leite não só pelo seu sabor, que só por si já bastaria. Mas, quero me referir ao seu entorno. Em primeiro lugar à minha avó paterna, pois era em sua casa que a cabra passava. Morava ela na esquina de Stella com Cubatão. Nos dias de visita da representante da raça caprina eu ia à casa da avó. Quando a senhora chegava eu descia com dois copos que eram enchidos. Pagava e subia com minha avó para deliciar-me. Ia esquecendo de um aspecto : a cabra anunciava a sua chegada tocando um simpático sininho colocado em seu pescoço.
Sentávamos minha avó e eu, em duas cadeiras de balanço. Velhas cadeiras, que a acompanhavam há mais de cinquenta anos. Eram de palhinha. Passávamos longo tempo sorvendo o leite. Vovó, então, contava-me histórias de seu tempo de jovem. As histórias sempre eram as mesmas. Cada narrativa, no entanto, apresentava aspectos novos ou que modificavam os descritos antes. Eu me deliciava.
Saibam, no entanto, que as nossas conversas e as suas narrativas não eram só regadas a leite. Não. Quando não havia leite, nós tomávamos um detestável martini branco, acompanhado de uma latinha de castanha de caju.
O leite de cabra e todos os produtos e serviços originários dos magníficos artesãos que batiam às nossas portas simbolizam uma época na qual o homem comandava atividades essenciais ao nosso dia a dia e criavam sólidos laços de afeição e de amizade. Por mais que possa a tecnologia não poderá substituí-los.