COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Marizalhas >
  4. Futebol: jogava-se em qualquer lugar

Futebol: jogava-se em qualquer lugar

terça-feira, 28 de março de 2023

Atualizado às 08:50

Na última crônica evoquei as minhas "aptidões" futebolísticas. Quero nessa pedir licença para fazer uma breve explanação de como era jogado o futebol nos anos cinquenta e sessenta em São Paulo. A primeira observação é de lamento, em relação à ação predatória de algumas construtoras que movidas pela ganância terminaram com os campos de várzea, existentes em todos os bairros de São Paulo. O Poder Público, por sua vez, não soube defender esses importantes espaços de sociabilidade.   

Na verdade, discorro não sobre como era jogado, mas qual o instrumento com que se atuava e os locais onde o esporte era praticado.

A bola, bem, a bola nem sempre era bola. Diga-se que ela era à época quase uma raridade. Poucos a tinham. Quem a fornecia se credenciava para jogar, como era o meu caso. Aliás, como disse no escrito anterior a única razão de ser escalado era essa. 

A bola era tão preciosa que a tratávamos, como se dizia antigamente, a "pão de ló". Dávamos-lhe carinhos especiais: para conservar o couro, passávamos sebo em todos os seus gomos. Naqueles tempos a chamávamos de bola "capotão". Não sei o porquê dessa expressão.

Nem sempre tínhamos bola ou mesmo local apropriado para jogar. No lugar da bola serviam meias, que grudadas uma a uma formavam uma esfera própria para ser chutada. Por vezes, para não perdermos o hábito, uma latinha também servia.

Quanto aos locais para o futebol, uma primeira observação. É com tristeza que se observa que São Paulo, em pouco tempo, perdeu as ruas, como seus espaços de convivência e de sociabilidade. Os campos de várzea também foram soterrados, como já disse. O trânsito e a especulação imobiliária foram os usurpadores. O poder público poderia ter planejado a existência de mais ruas que pudessem, em cada bairro, ser fechadas para serem ocupadas pelas pessoas, como se fez com a avenida Paulista aos domingos.

Mesmo na minha época de jovem, de adolescente e mesmo antes de menino, além da rua qualquer espaço era espaço para jogarmos. Sempre encontrávamos um meio de transformar os locais em campos. As traves, bem as traves eram pedaços de pau, tijolos, pedras, até nossos sapatos ou quaisquer outros objetos serviam para demarcar os gols.

Não se pense que vivíamos de improvisações. Não. Por vezes conseguíamos atuar no Colégio Ipiranga; no Ateneu Brasil; na quadra da Faculdade Paulista de Medicina, no "campinho" do Olímpicos da Vila Mariana; em uma chácara de meu avô localizada em Diadema. Também exercíamos as nossas habilidades futebolísticas em locais menos ortodoxos como vilas, ruas, terrenos abandonados jardins e quintais. 

No entanto, o nosso estádio, o nosso campo, o nosso especial reduto, o nosso abrigo era a rua Stella. Lá tudo fazíamos e tudo era possível de ser feito, inclusive acolher as nossas pelejas.

No entanto, na Stella nós nos defrontávamos com um problema insolúvel. Jogávamos em um trecho da rua na qual ela passava a ser uma ladeira. Assim, o time que ficava na sua parte baixa tinha insuperáveis dificuldades para atacar. Era fundamental a escolha do lado, antes da partida ter início.

Mas não se pense que as nossas saudáveis atividades esportivas não eram do agrado dos habitantes da Stella. A maioria nos compreendia e por nós nutria simpatia. Alegrávamos a rua, com nossos jogos, conversas e por vezes cantorias.

Havia duas moradoras, irmãs, que nutriam indisfarçável implicância com o nosso futebol de rua. Na verdade, a implicância era mesma conosco. Uma ocasião em que um dos gols era o portão de sua casa, a bola, inadvertidamente, caiu em seu jardim, fato que não era incomum. Mas, desta feita foram rápidas e apreenderam a pelota, não a devolveram e, suprema violência, a furaram.

A nossa indignação só não foi maior do que o nosso desejo de vingança. Logo surgiu uma ideia, bastou olharmos para um pé de café que ornamentava o pequeno jardim da pequena casa. Nada tínhamos contra a simpática rubiácea e suas reluzentes folhas. No entanto, tínhamos que devolver a infâmia praticada contra o objeto de nossas afeições, a bola. Pagaríamos na mesma moeda, atingindo o xodó de ambas que era o pé de café. Arrancá-lo seria a forma mais eficaz de atingir as irmãs agressoras.

Em uma noite, cortamos a pequena árvore e a encostamos na porta de entrada da casa. A vindita estava consumada. E logo estávamos com outra bola, passando de pés em pés.