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A detenção de inocentes incendiários

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Atualizado às 07:14

Eu jamais fui protagonista direto ou indireto de nenhuma conduta delituosa de alguém, que posteriormente viria a ser meu cliente. Era procurado para defender e o fazia com base na narrativa do acusado e das provas vindas para os autos. O meu conhecimento do fato era, portanto, pós fato.

No entanto, como exceção, protagonizei dois episódios que ficaram gravados na minha memória e nos meus sentimentos. Duas foram as razões da minha memória haver registrado ambos de forma indelével: primeira, todos os participantes das cenas eram e são meus amigos de infância; ademais as cenas foram pitorescas, para não dizer hilárias, assim como hilária foi a minha intervenção como quase advogado, como rábula.

Devo explicar porque elas também me marcaram sentimentalmente. Tanto os participantes de ambas quanto os próprios episódios estão cobertos pelo manto da amizade e do passado, um passado juvenil pleno de aventuras e de venturas.

Agora narrarei um dos episódios. Estávamos, como sempre, no início da noite, reunidos na rua Stella, a nossa gloriosa rua, que emprestava o seu nome à nossa não menos gloriosa Turma, denominada T.S. Ficávamos em frente à segunda vila que lá existia, essa em frente ao campo de várzea do também gloriosa Olímpicos da Vila Mariana. Percebe-se que para nós todos e tudo que nos cercavam constituíam uma glória. Salvo os times de futebol. Nós são-paulinos obviamente não glorificávamos o Corinthians, Palmeiras, Santos e vice-versa.

Por se tratar de uma sexta-feira, estávamos todos reunidos nos aquecendo para uma nova jornada boêmia. Uma boemia quase infanto-juvenil, pois os mais novos tinham quinze anos. Como éramos ousados, inquietos e curiosos, nos aventurávamos pelo centro da cidade indo a bares como o Bar do Jeca, o Ponto Chic, Salada Paulista, até o Avenida Danças. Aí a ousadia era suprema. Lá só se estivéssemos de gravata e com algum dinheiro a mais, para picotar os cartões das dançarinas.  

Os mais velhos, por vezes, iam ao Clube de Paris, Dakar, Vagão etc. Não poucas vezes ao Som de Cristal, estupenda gafieira. Não nos aventurávamos a dançar, apenas assistir. Era um verdadeiro espetáculo vermos os casais, elegantíssimos dançando, na verdade bailando. O respeito era grande, a ponto de o cavalheiro dançar com um lenço em sua mão direita para não manchar o vestido da dama.  Uma outra gafieira famosa existia na rua da Glória, o Paulistano da Glória.

Pois bem, voltando ao episódio. Alguém do nosso grupo resolveu verificar se um líquido que escorria pela rua perto da sarjeta era água ou outro líquido. Era outro e não água. Era gasolina. O seu teste seria inofensivo se para fazê-lo não tivesse usado um isqueiro. O fogo espalhou-se e ameaçou alguns dos carros estacionados. Alguns chegaram a ficar um pouco danificados. Preocupados que ele pudesse se alastrar e tomar a rua, com risco a quem passasse e às próprias casas, todos nós, heroicamente, passamos a tentar afastar os automóveis.

Nessa empreitada destacou-se um de nós: Tamer Chain, campeão panamericano de halterofilismo. Enquanto seis ou sete se esforçavam para afastar um carro das chamas, Tamer sozinho arrastava a traseira e depois a frente e punha o veículo a salvo. Houve um Volks que ele literalmente levantou a parte da frente.

Não passou muito tempo e várias viaturas chegaram. A nossa planejada e esperada noitada transformou-se em uma compulsória excursão ao Pátio do Colégio, então sede do 1º Distrito Policial da Capital. Depois de contarmos o que ocorrera o delegado de plantão passou com insistência a indagar quem fora o autor da façanha.

Como não tínhamos nenhuma propensão à delação permanecemos num mutismo solidário e absoluto. Sabíamos que o incendiário fora, o mais sério, o mais ajuizado ou menos desajuizado de todos, "o Velho". Como assinala sua alcunha, o mais antigo de todos nós.   

Tive a ideia de perguntar à autoridade policial em qual faculdade havia se formado. Formara-se exatamente na minha faculdade, a Paulista de Direito da Universidade Católica. Bem aí as coisas ficaram mais fáceis, pois comecei a falar dos meus professores, alguns que tinham também sido dele. Citei algumas façanhas que conhecia dos estudantes e das turmas de sua época. Fatos por mim mencionados, que até o emocionaram, foram os relacionados com as disputas entre o 11 e o 22 de Agosto, Centros Acadêmicos da São Francisco e da Católica. Eram os famosos jogos entre ambas as Faculdades, denominados "33 de Agosto". Por fim, descobrimos ter ele pertencido ao partido acadêmico do qual eu era presidente, o Partido Universitário Independente, o PIU.

A pirotécnica noite terminou na delegacia, mas todos fora das grades e se congratulando com a autoridade, eminente "puquiano".