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O fórum do meu tempo

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Atualizado em 8 de setembro de 2020 13:51

Outro dia me questionei: será que nunca mais vou compulsar um processo? Não mais teria em mãos uns autos? Não lerei ao vivo e em cores portarias de instauração de inquéritos; boletins de ocorrência; certidões de cartório ou de oficiais de justiça; carimbos; despachos de delegados; cotas de promotores; termos de depoimentos; laudos; relatórios de delegados; denúncias; decisões interlocutórias; acareações; reconhecimentos; alegações escritas; transcrições de debates em audiências; sentenças; razões; acórdãos?

Parece que não. Dirão muitos, "mas você tem isso tudo online". Ah é. Sei que tenho. E daí. Isso não me satisfaz. Eu quero o prazer de ter a papelada nas mãos. Trata-se de um prazer proporcionado pelo tato. É como o livro. É como o carinho. Alguém vai me convencer que é bom o carinho ou a carícia online?

Com grande dificuldade eu tenho acesso aos autos pelo computador. Aliás, deixa eu ser honesto, nem acessar eu sei. Sempre há quem o faça para mim. Vejam, eu jamais precisei de alguém para compulsar processos. Agora sinto-me capenga, meio aleijão. Mas não pensem que me rendo e fico no computador para ler, não. Todos os processos são imediatamente impressos. Só leio no papel. Pronto.

Lembro-me dos processos e imediatamente vem à mente o Fórum do meu tempo e os seus personagens. Comecei a advogar quando os cartórios e as varas criminais estavam instalados no vetusto e maravilhoso prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Por lá transitavam, diariamente, todos os protagonistas da cena judiciária. Figuras que me marcaram indelevelmente. Tenho-os vivos na lembrança e no coração. Meu começo foi com eles e até o fim os terei na memória e no coração.

Vou começar pelos acusados, pois são eles os responsáveis por todas as atividades desenvolvidas no Fórum. São os principais protagonistas. Caso não existissem não haveria justiça criminal. Como o crime é um fenômeno ligado à condição humana, com as suas misérias e as suas grandezas, eles jamais deixarão de existir. Existir não como objeto do processo, mas seu sujeito, portador de deveres e de direitos, sendo inocente ou culpado.

Devem ser respeitados, mas é verdade que dão um imenso trabalho. Para mim o momento crítico, de maior tensão, é o do interrogatório. Um martírio. Por mais que se oriente, explique, treine nunca se tem certeza do seu desfecho. Esse drama aumenta nos casos levados ao Tribunal do Júri.

Acusado de homicídio contra o amante de sua mulher e de tentativa contra ela, o meu cliente foi exaustivamente instruído sobre um ponto específico: ele deveria dizer que sempre portava uma arma, pois saia cedo e morava em um lugar ermo, como justificativas. Ele possuía registro e porte. Era inconveniente que os jurados pensassem ter ele se armado para cometer o crime. Encontrou o casal casualmente e, como sempre, se encontrava armado.

Pois bem, após indagar quem era o seu advogado, o presidente do Júri foi logo perguntando se era comum ele andar armado. Sem perder tempo foi logo dizendo "JURO POR DEUS QUE NÃO". O juiz amigo, Edgardo Severo de Albuquerque Maranhão olhou para mim e balançou a cabeça. Eu, desalentado cobri o rosto...

Falar de acusado deve-se falar dos defensores. Destaco um episódio ocorrido com um advogado que marcou época pela sua alegria, desconcentração, simpatia, Paulo Brandão.

Antes do episódio uma sua característica. Nos dias que iria atuar na Tribuna do Júri passava em uma pastelaria existente na rua Onze de Agosto e comprava considerável quantidade de pastéis. Com a autorização do Juiz Presidente ele os distribuía antes da sessão. O juiz, os jurados, funcionários, advogados, promotores, a escolta e para o próprio acusado, todos como que se confraternizavam antes do embate judicial, em torno dos deliciosos pastéis.

Paulo Brandão costumava invocar Cristo em apoio à proclamação da inocência do acusado. E dizia: "por esse Cristo que aqui está o réu é inocente" ou "por esse Cristo que aqui está o réu agiu em legítima defesa". Fosse a tese que fosse Cristo era chamado para reforça-la.

Pois bem, certa feita, após fazer a sua chamada divina virou para trás e não viu o Cristo. Não se deu por rogado "o réu é inocente por esse Cristo que não está aqui, mas que deveria estar"... e continuou a sua peroração.

Recordo-me com carinho e saudade de dois oficiais de justiça que atuavam no 1º Tribunal do Júri, Pinheiro e Mesquita.

Por trabalharem nas sessões, entravam na sala secreta durante as votações, para recolherem os votos dos jurados. Um passava com o saco para recolher os votos válidos e o outro os votos não computáveis.

Essa atuação os credenciava, segundos eles, a saber o perfil de cada jurado. Pois bem, um dia antes dos julgamentos de caso meu, iam ambos ao escritório. À época tinha escritório na Praça da Sé, 399. Iam com a lista de jurados em punho, para avisar-me que esse ou aquele jurado deveriam ser recusados, pois eram contumazes condenadores. Outros, ao contrário, com toda a tranquilidade poderiam ser aceitos, pois sistematicamente votavam com a defesa.

Saiam do escritório com a sensação do dever cumprido para com o advogado amigo. Claro que com uns trocados também. Eram, além de zelosos funcionários públicos, eméritos boêmios, como tal sempre precisavam de um reforço orçamentário.

Eu ia me esquecendo que em regra as suas indicações normalmente falhavam. Quem eu aceitava condenava, já o recusado, não se sabe...

Em breve continuarei a comentar sobre o Fórum do meu tempo. Salvo engano, no Cartório do Segundo Tribunal do Júri havia um oficial de justiça, que em todo final de ano, às vésperas do natal, passava uma lista para ajudarmos no tratamento de um parente ou mesmo para que pudesse enterrar um amigo ou parente morto.

Houve uma ocasião que passou a lista para os funerais da mãe que havia falecido. Com muita pena começamos a nos cotizar, quando alguém disse a ele que a sua mãe já havia falecido fazia alguns anos. Não se alterou, imediatamente tirou do bolso uma outra lista dizendo 'enganei-me quem morreu agora foi meu pai'...