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Um homem magnânimo

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Atualizado às 09:29

Ele era psiquiatra. Daqueles verdadeiramente vocacionados, impelidos desde tenra idade a desvendar a mente e a alma, especialmente as mentes com anomalias, e, em consequência, as almas conturbadas.

Sua extraordinária vocação, aliada aos seus ininterruptos estudos e atualizações científicas e a uma ampla cultura humanística e universal, fez dele um dos mais renomados psiquiatras brasileiros.

Aos seus conhecimentos teóricos adquiridos durante o curso de medicina e atualizados por toda a sua vida, foram acrescentadas atividades práticas desenvolvidas inicialmente no Juqueri e posteriormente no Departamento Médico do Estado, no setor de psiquiatria, e no Sanatório Bela Vista, do qual foi diretor clínico por décadas.

Não se pense que a psiquiatria o deixou alheio à medicina em geral. Dotado de sólida formação clínica inerente ao ensino médico da sua época, meu tio Marizito, Eugênio Mariz de Oliveira Neto, diagnosticava com exatidão infalível. Olhava e após tirar a pressão, efetuar algumas perguntas dava o diagnóstico e indicava o médico especializado, que confirmava a sua opinião.

Eu mesmo pude testemunhar essa sua capacidade. Não foram poucas as vezes que ele, com acerto, detectou doenças em minha mãe, vítima de uma patologia cardíaca que provocava não poucos efeitos colaterais. Assim que a via, indicava o médico especialista que tratava da doença por ele indicada.

A sua retidão de caráter e fidelidade a seus princípios eram acompanhadas por outros dois atributos que ornavam a sua personalidade e marcavam a sua conduta: o seu desprendimento e a sua generosidade.

Não foram poucas as suas demonstrações de solidariedade e de sensibilidade em face das dificuldades daqueles que o cercavam. Supria as necessidades médicas e emocionais das pessoas, assim como as carências materiais.

Quantas e quantas vezes socorreu os que necessitavam de um conselho, de uma orientação, da indicação de um rumo. Eu sou testemunha das inúmeras ocasiões que amparou quem o procurava. Eu mesmo fui alvo de seu acolhimento, não poucas vezes.

Lembro-me de um fato notável, a ilustrar essas suas características. Dessa feita o seu socorro foi material. Minha mãe, em 1958, submeteu-se a uma então pioneira cirurgia cardíaca, para desobstrução da válvula mitral. O cirurgião, professor Zerbini, realizava a cirurgia com o bisturi entre os dedos e com o tato procurava atingir a região a ser operada. Ainda não havia o aparelho que substituía o coração durante a intervenção.

Tão delicada operação era dispendiosa. Profissional liberal papai não possuía folga financeira. Para fazer frente às despesas colocou seu carro, um Nasch, 1949, à venda. No entanto, premido pela necessidade inadiável da cirurgia, autorizou-a, na crença de poder, de alguma forma, saldar os honorários médicos e os custos hospitalares.

Pois bem, a sua fé o acudiu. Na verdade, o salvou a bondade do seu irmão mais velho, Marizito.

Sem nenhum alarde ou prévia comunicação, discretamente, em uma de suas visitas à minha mãe, no hospital Beneficência Portuguesa, deixou em cima de uma mesa um embrulho de jornal, como se o tivesse esquecido.

Papai tentou alcança-lo no corredor. Ele já se fora. Dentro do pacote havia a quantia necessária para saldar as despesas que meu pai teria, com os honorários médicos, já conhecidos.

A ausência permanente desse ser generoso, abriu uma clareira de solidariedade e de amor ao próximo, sentimentos que valorizam o ser humano e dão significado ao ato de viver.