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Os anjos sem asas e o imortal

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Atualizado às 09:43

Você entra e elas correm. Em sua direção. A partir desse momento você passa a ficar protegido e amparado.

"Chamo-me Joana e vou acompanhá-lo junto com a auxiliar Tereza durante toda o dia. À noite virão outras".

Não se vestem de branco, mas, com certeza, possuem asas. Quando chamadas voam ao nosso encontro.

Creio que muitas e muitas vezes são solicitadas por nada. Queremos vê-las e só. Nesses casos, atendem não ao físico, mas ao espírito. Acalmam, procuram retirar a angústia, a ansiedade, a solidão e o medo da morte.

Há momentos nos quais o constrangimento, o pudor, a vergonha, eu sei lá, tomam conta de nós. Elas, no entanto, sublimam, em nome do sagrado dever de nos cuidar, quaisquer sentimentos que pudessem ter que as inibissem.

Agem com a mais absoluta naturalidade. Refiro-me, dentre outros momentos, à hora do xixi. "Quero, embora não gostaria de querer, mas preciso fazer xixi". "Ah!, pois não", responde ela, como se o pedido fosse por um mero copo d'agua. "Vou buscar o papagaio". E eu penso: "Por que a denominação "papagaio"? Será que tem a forma da falante ave"?

Então, ela traz o dito cujo, e ameaça retirar o lençol. Eu pulo, quase dou um salto. A impeço de continuar. "Não, grato eu mesmo faço", digo. Nessa altura, estou lívido ou completamente ruborizado, não sei. Bem coberto, faço o necessário encaixe, mas fico aguardando-a se retirar. Vigilante, ela se afasta da cama, mas não do quarto. Eu rezo para que ela se retire. Eu rezo e a minha bexiga implora, prestes a estourar. Ela percebe e sai. Alívio. Volta em seguida para livrar-me do papagaio, que eu a entrego.

Há ocasiões que os querubins se distraem com o nosso sofrimento. Aliás, ponha sofrimento nisso. Como quando retiram o esparadrapo ou quaisquer outras colas que arrancam os nossos inofensivos pelos. Elas riem e dizem: "Viu só como mulher sofre quando se depila". Eu sei que depilação provoca incômodo. Mas, precisamos, nós homens, sofrer também?

Sei que não nos fazem sofrer propositadamente. São as circunstâncias. Mas que gostam do nosso padecimento, isso lá gostam... Vejam, nem por isso perdem a sua condição de anjos. É uma questão ligada a hoje tão discutida "questão de gênero". Igualados na dor física, homens e mulheres se aproximam e viram um só gênero.

Dramática também é a hora da punção de uma veia para retirada de sangue, colocação de soro ou algum outro procedimento. Os nossos anjos sinceramente sofrem quando não a encontram e devem ficar nos picando até o salvador encontro. O imortal Ignácio de Loyola Brandão, após passar por intensas agruras hospitalares, com excepcional poder criativo e esmerada escrita, nos legou o livro com o singular e delicioso título "Veia Bailarina". Está tudo lá.

Tal como eu, Ignácio deve ter tido vários anjos a lhe amparar. No seu caso, os cuidados e a proteção foram tão intensos e eficientes que ele se tornou um imortal. Pôde sair do hospital e ir para a Academia Brasileira de Letras.