Fatos e fitas: civismo e solidariedade
quinta-feira, 1 de novembro de 2018
Atualizado às 09:59
A Faculdade de Direito tornou-se um campo fértil para os debates em torno de temas e de questões que estavam agitando a Nação e provocando movimentos armados em vários Estados. Assim, a consolidação da Independência; a rivalidade entre nativos e portugueses; a abdicação de D.Pedro I; a instituição da Regência; a maioridade de Pedro II, a República e a escravidão, dentre outros, suscitaram não só polêmicas e acirradas discussões, como levaram à criação de grupos cujos integrantes estavam ligados por pensamentos e objetivos comuns.
A questão da maioridade de D. Pedro II, vinha sendo colocada como fundamental para que a normalidade institucional reinasse no país, conturbado por revoltas armadas. Na capital do país, em 1838, foi criada a "Sociedade Promotora da Maioridade" ou "Clube da Maioridade", cujo objetivo era criar condições jurídicas para que o filho de D. Pedro I assumisse o trono do Brasil. Os acadêmicos se dividiram, a favor e contra a antecipação da maioridade. Essa divisão provocou grandes divergências e acirrados debates.
A Faculdade de Direito de São Paulo também constituiu um dos primeiros núcleos organizados para a luta contra a escravidão. No início foi um grupo que se manteve na clandestinidade, logo após, passou a defender os ideais abolicionistas de forma transparente e pública.
É importante realçar que os movimentos abolicionistas foram contemporâneos aos de natureza nativista e republicano, mas com estes não se confundiam, pois alguns desses últimos não necessariamente objetivavam o fim da escravidão, mas ao contrário, desejavam a sua permanência. Os representantes das classes mais abastadas, especialmente da aristocracia rural, não queriam nenhuma alteração no status quo. Os estudantes de Direito dessa mesma origem defendiam os interesses de seus pais, e se opunham à libertação dos escravos.
Interessante notar que muitos líderes das revoltas nativistas da época possuíam escravos. Tiradentes, por exemplo, sempre se fazia acompanhar por um escravo. Ademais, muitos dos escravos alforriados, tendo se tornado economicamente ativos, passaram a possuir cativos. Francisco Paulo da Silva um negro do Vale do Paraíba era proprietário, de aproximadamente, duzentos escravos, em suas Fazendas situadas no Vale do Paraíba.
Como não eram poucos os acadêmicos anti-abolicionistas, o ambiente na Faculdade era marcado por desavenças que, por vezes, se transformavam em dissenções irreconciliáveis.
Mesmo em período mais próximo à abolição, a resistência à libertação dos escravos recrudesceu e vinha pelas vozes de figuras proeminentes, podendo ser citado apenas um exemplo: José de Alencar defendia a escravidão e atacava os abolicionistas chamando-os de "emissários da revolução, apóstolos da anarquia".
Saliente-se, que a Igreja católica apoiava a escravidão. Negros eram "povos infiéis", descendentes de Caim, filho de Noé. É possível que essa posição tenha, também, exercido influência importante em relação aos estudantes com tendências escravocratas. Não se esqueça da grande influência clerical na época do Império, onde Estado e Igreja não estavam separados.
Dos abolicionistas estudantes de Direito destacou-se Antonio Bento de Souza e Castro. Diversamente de outros líderes da abolição que transmitiam as suas ideias por meio de escritos, em prosa e verso, ou por meio da palavra discursada, ele, talvez por não possuir recursos culturais que o credenciassem a ajudar a causa da libertação dos escravos por meio de atividades ligadas ao intelecto, agia de forma efetiva e pragmática.
Com efeito, Antonio Bento teve uma participação extraordinária na luta abolicionista. Como promotor de Botucatu e Limeira e, após, na qualidade de juiz municipal e delegado de polícia em Atibaia, sempre que as suas funções ensejavam oportunidade, ele não se constrangia em demonstrar o seu posicionamento, por meio de medidas e decisões desfavoráveis aos proprietários de escravos.
Quando veio do interior para advogar em São Paulo, o ex-aluno da São Francisco passou a atuar em prol dos escravos, e a sua ação foi literalmente de libertação, pois os ajudava a fugir dos cativeiros, e os encaminhava para o quilombo do Jabaquara, em Cubatão e para outros locais. As fugas eram promovidas por um grupo por si criado, denominado de caifazes. Estes homens, que usavam uma camélia branca na lapela, exerciam as mais variadas profissões e se reuniam especialmente na Igreja dos Remédios, no Largo de São Gonçalo, e de lá partiam para as ações concretas.
Os caifazes formavam e dividiam em pequenos grupos que se espalhavam por cidades do interior, adredemente escolhidas. Invadiam as propriedades rurais e retiravam tantos escravos quantos possíveis fossem. Inúmeros escravos eram "adotados" por abolicionistas que lhes davam proteção e ocupação remunerada, para sua sobrevivência. Esses negros eram levados e encaminhados para várias localidades em Minas, Rio e Mato Grosso e para várias cidades paulistas.
Foi de grande auxílio aos caifazes os ferroviários de São Paulo. Eles transportavam os negros das cidades nas quais eram libertos para São Paulo, e desta para outros destinos especialmente para Santos, onde ficavam no quilombo do Jabaquara ou de navio iam para o Rio de Janeiro, para ser acolhidos pelos quilombos domésticos. Para serem colocados nos vagões, havia uma senha: "segue bagagem" e a partir daí passavam os cativos a receber proteção e ajuda dos funcionários do trem e das estações por onde passava.
Os caifazes constituíam uma sociedade secreta, no sentido da não identificação de seus integrantes, com ramificações em todas as camadas sociais e representantes em várias instituições públicas ou privadas, o que facilitava sobremodo o planejamento e a execução dos planos de fuga dos escravos.
O grupo abolicionista possuía um jornal "A Redempção" editado por Antonio Bento, que se tornou um eficiente veículo de difusão da barbárie representada pela escravidão e ao mesmo tempo um poderoso veículo para provocar na sociedade um sentimento adverso contra os escravocratas. Outros jornais foram fundados por Antonio Bento tais como "O Arado" e "A Liberdade".
Os caifases e os seus órgãos de imprensa, criados por inspiração e iniciativa do acadêmico do Largo, podem ser considerados um dos fatores fundamentais para libertação dos cativos brasileiros, ou pelo menos uma sólida semente que contribuiu para a geração da abolição.
Nas décadas subsequentes, os estudantes de Direito criaram vários jornais acadêmicos, com o escopo de difundir os princípios abolicionistas. O "Ça Ira" e "A Onda" tiveram grande destaque, passando esse a ser os porta vozes do Centro Abolicionista Acadêmico.
O Largo não legou apenas o chefe dos caifases como figura de realce na luta pelo fim do servilismo negro. Em décadas diversas, estudantes do Largo se destacaram na luta antiescravista. Além de Antonio Bento, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, que não concluiu o curso em São Paulo, Raul Pompéia, Pimenta Bueno, Valentim Magalhães, Paulo Eiró, dentre outros inúmeros outros, reunidos no Pateio da Faculdade, então denominado de "Gerais", traduziam por inflamados discursos e comoventes poesias os elevados ideais libertários.
Além de inúmeros ardorosos abolicionistas, pode-se afirmar que, embora nela não tenha se formado, mas com ela manteve estreito relacionamento, a Academia gerou o rábula negro Luiz Gama, o grande defensor de escravos perante a Justiça, tendo segundo seu próprio relato em carta a Lúcio de Mendonça obtido a libertação de mais de quinhentos cativos.
Nascido na Bahia, filho de um português e de uma negra, escrava liberta, que foi presa várias vezes por haver participado de movimentos revoltosos, Luiz Gama passou sua infância como escravo. Foi vendido como tal pelo próprio pai, quando tinha dez anos.
A sua origem, no entanto, segundo ele mesmo narrou, dificultou sobremodo a sua comercialização: quando era declinado o seu Estado natal, a sua compra por parte dos senhores ficava inviabilizada. Os compradores desistiam da aquisição quando tomavam conhecimento da sua condição de "baiano". Luiz Gama se viu liberto por falta de mercado.
Depois de servir ao exército, veio para São Paulo e aqui trabalhou como funcionário público. Nesse período, passou a se interessar pela causa dos escravos, fato que o levou a estudar com afinco a legislação até então existente sobre a escravidão, bem como a conviver com alguns professores e alunos do Faculdade. Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, professor da Academia e José Bonifácio o Moço ajudaram-no a se tornar um autodidata em Direito.
Especializou-se na legislação e com coragem, esmero técnico e eloquência conseguiu não só retirar do cativeiro cinco centenas de cativos, assim como obteve na Justiça o reconhecimento de vários direitos dos negros mesmo já alforriados, mas que ainda viviam em situação precária e sem a proteção legal. Trabalhou, em regra, sem cobrar honorários e tornou-se um dos maiores advogados que o Brasil conheceu, embora não tivesse se formado.
Algum tempo depois um outro notável advogado, que igualmente começou como rábula, formado no Rio de Janeiro, Evaristo de Moraes, escreveu sobre seu irmão de cor, descrevendo a epopeia que foi a sua carreira de advogado, considerada por Gama, como um verdadeiro sacerdócio.
Evaristo, por sua vez, começou sua atuação como rábula, defendendo seus colegas da estiva, quando se envolviam em brigas entre si e especialmente contra a polícia. Posteriormente, já formado, participou dos grandes julgamentos da época. Foi, por exemplo, advogado do oficial do Exército Dilermando de Assis, autor de dois homicídios: matou Euclides da Cunha e, anos depois, seu filho, que levava o seu nome e era conhecido como Quidinho. Ambos foram absolvidos
Ao contrário de Evaristo que pode bacharelar-se, Luiz Gama não obteve êxito em seu intento. Não restaram esclarecidas as razões que o impediram de estudar no Largo de São Francisco. Este fato, no entanto, não o impediu de conviver com vários alunos e durante anos com antigos estudantes que frequentavam o seu escritório, pois se tornara um símbolo, uma referência da advocacia da época. Foi um percussor da defesa dos direitos humanos.
Embora sem o grau de bacharel em Direito Luiz Gama pode ser considerado um legítimo representante das Arcadas, pois encarnou todos os valores secularmente defendidos gloriosa Academia.