Fatos e fitas - Introdução para crônicas a serem publicadas
terça-feira, 5 de junho de 2018
Atualizado em 4 de junho de 2018 15:46
Formado na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nutro por ela muito carinho e permanente saudade, quando relembro os anos do curso de Direito. Tive a ventura de viver inesquecíveis episódios ligados às atividades acadêmicas, marcadas por festas, trotes, reuniões memoráveis em bares e restaurantes, intensa militância política, práticas esportivas, das quais participava apenas como cartola e as famosas choupadas no então campo de futebol ou no sobrado do Centro Acadêmico 22 de Agosto.
No velho convento da Monte Alegre construí amizades perenes; conheci minha mulher; tive aulas com excepcionais professores, aprendi a conviver com os contrários e forjei minha personalidade e o meu caráter, baseados na solidariedade e no respeito pelo próximo.
No entanto, a Faculdade de Direito Largo de São Francisco sempre despertou a minha afeição e o meu interesse pela sua gloriosa história. Aliás, diga-se que a Academia simboliza os atributos e características de todos os bacharéis em Direito, que vocacionados para as lidas com o Direito, estão impregnados do espírito acadêmico das Arcadas, pouco importando a sua origem escolar.
Esse espírito foi sendo forjado nas Arcadas no curso dos anos e relacionado ao comprometimento que seus estudantes sempre tiveram com a liberdade, com o culto do espírito, com o humanismo, com a poesia, com a solidariedade, com o amor ao próximo, com a Justiça social. Estes valores foram cultivados e cultuados desde a fundação da Faculdade e a acompanham por quase dois séculos.
Pode-se afirmar que esse rol de interesses superiores do espírito humano deveria projetar-se para a sociedade brasileira como um todo. Ela seria melhor. Aliás, houve época em que tais valores preponderavam. Foi exatamente quando o Brasil era considerado o "País dos Bacharéis".
O espírito acadêmico possui várias características e peculiaridades identificadoras do bacharel em Direito. No entanto, este espírito só é personificado por aqueles que são verdadeiramente vocacionados para exercer quaisquer das carreiras ligadas ao Direito e aos ideais de Justiça. Sem esse espírito e sem a vocação, formam-se em Direito e nada mais. No entanto, é justo que se diga: existem portadores do espírito acadêmico que nunca exerceram as profissões respectivas, mas nem por isso perderam os ideais do bacharel.
Muitos já tentaram conceituar o espírito acadêmico, mas esta caracterização parece estar sempre incompleta. O lado galhofeiro, chamado por alguém de acriançado, travesso, buliçoso, irreverente, rebelde, cômico, aventureiro, convive com aqueles ideais de liberdade, solidariedade e outros. Todas essas marcas habitam a nossa alma. No entanto, há mais e nos resta continuar a descobrir porque somos o que somos.
Além de portador do espírito franciscano, que como disse caiu no domínio de todos os bacharéis, laços hereditários ligam-me à Velha Academia. Nasci e cursei precocemente a Faculdade, pelo menos por osmose. Osmose paterna que infiltrou em meu inconsciente desde o meu nascimento o seu amor Franciscano. Quando vim à terra, meu pai cursava o terceiro ano. Estive presente à sua missa de formatura.
Talvez com um ano, pouco menos ou pouco mais, passei a frequentar o centro Acadêmico Onze de Agosto, e fui protagonista de episódios marcantes, narrados inúmeras e repetidas vezes por seus participantes. Sempre que posso eu também os repito a terceiros.
Os estudantes se reuniam no Centro Acadêmico 11 de Agosto todas as noites da semana, para a prática de atividades físicas, jogo de sinuca e suas variantes, vinte um, vida e mata - mata, acompanhadas de tertúlias literárias e etílicas. Ao saírem, davam sempre demonstração de seu espírito fraterno e solidário, ao externar a sua preocupação com a infância. Esta, naquelas ocasiões, era por mim representada. Meus pais moravam com meus avós paternos na rua do Riachuelo, exatamente atrás da Faculdade e em frente ao Onze. Pois bem, ao deixar o Centro eles se colocavam em baixo da janela do nosso apartamento para, alto e bom som, lembrarem o jovem casal da obrigação de alimentarem o filho recém-nascido: "Macacão, acorda para dar leite para o macaquinho". Invariavelmente meu avô, por eles chamado de "Macaco Velho" saía à janela e ameaçava os acadêmicos de morte, que, em verdade, nada mais estavam fazendo do que zelar pela minha saúde.
Em outra ocasião fui levado ao Centro Acadêmico por meu pai. Depois de passar de braço em braço, eu desapareci das vistas de todos. Depois da mobilização dos aflitos estudantes eu fui encontrado sendo posto dentro da geladeira. Consta que o meu salvador foi o lendário Chico Elefante. Durante anos, dois estudantes da época disputaram a autoria do sequestro, quase cárcere privado: Anacleto Raposo Holanda e Kleber de Menezes Dória. Cada um deles assumia a autoria da façanha e mostrava grande indignação em face da mentira proferida pelo outro.
Eu imagino um estudante do Largo expondo fatos os mais variados, ocorridos no curso dos anos, já séculos, quase dois. Narraria também fitas, estas como um conjunto de fatos, em parte verdadeiros, meio falsos ou inteiramente falsos, mas fruto, da criação mental, talvez da invencionice, mas como toda ficção, sempre respaldados por uma inspiração espelhada na realidade, que pode estar mais, ou estar menos, distante da mesma ficção. Portanto, o tempo transcorrido, as sucessivas versões, a imaginação dos que foram narrando e outros fatores construíram ao lado dos fatos as fitas em torno desse monumento institucional que é a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
Perceberam que esse estudante é atemporal. Ele testemunhou o que irá narrar, pois deve representar as várias épocas da Faculdade, mas, ao mesmo tempo, significa simbolicamente o elo de união de todas essas épocas, pois elas, em verdade, constituíram uma unidade indivisível do Largo de São Francisco. Ela é única, do seu nascimento aos nossos dias.
Tanto o narrador, como a Faculdade são, portanto, atemporais. Não há Academia deste ou daquele período da história de São Paulo e do Brasil. Há uma única, da qual emana o espírito acadêmico, que é superior ao tempo, às mudanças sociais ocorridas, e aos próprios homens que construíram esse espírito e ao próprio rigor histórico dos fatos e à dose de criatividade de suas fitas.
Por todas essas razões, resolvi escrever, como disse, despretensiosas crônicas sobre a Faculdade, desprovidas de rigor histórico, cronológico e baseadas em uma pesquisa que poderia dizer perfunctória, mas escritas com o espírito e com a alma desejosos de reverenciar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco como uma das mais importantes instituições nacionais.
No entanto, há um outro escopo: homenagear aquele que incutiu esse amor em meu espírito, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, meu pai, da Turma de 1946, a melhor de todas, segundo ele.
Quero deixar patente os meus sinceros e comovidos agradecimentos a dois ex-alunos da Faculdade, que me incentivaram e colaboraram decisivamente ao fornecer um material precioso para as crônicas: Armando Marcondes Machado Jr., o grande pesquisador e historiador da Faculdade e José Carlos Madia de Souza, lutador incansável pela eternização das tradições acadêmicas, presidente da Associação dos Antigos Alunos da São Francisco.