Um advogado invejável
segunda-feira, 4 de junho de 2012
Atualizado em 1 de junho de 2012 15:22
A trajetória profissional de Evandro Lins e Silva provoca inveja. A inveja sã, não a destrutiva. A inveja que transforma o invejado em modelo a ser seguido e imitado. Qual o advogado criminal brasileiro que não gostaria de ter vivido a vida profissional e pública por ele vivida?
Evandro cumpriu o duplo papel que desde a fundação dos cursos jurídicos foi destinado aos advogados: exercer as funções inerentes às carreiras ligadas ao bacharelado em direito e exercer funções públicas na administração ou na política.
O Visconde de Cachoeira em 1825, quando elaborou o projeto de regulamentação dos cursos jurídicos, disse que eles não formariam apenas magistrados e peritos advogados, mas deputados e senadores para ocuparem "os lugares diplomáticos e demais empregos do Estado".
Evandro cumpriu esse destino. Advogou com intensidade durante sua longa vida. Abriu hiatos apenas para dedicar-se à causa pública, como procurador Geral da República, chefe da Casa Civil, ministro das Relações Exteriores e ministro do Supremo Tribunal Federal, sendo dele retirado por ato de força do governo militar.
Mesmo quando exclusivo militante da advocacia, ele não deixou de atuar em prol da sociedade e da cidadania, aliás cumprindo um fadário da advocacia que é o de ser a porta voz dos anseios e das aspirações da sociedade. Basta que se dê um exemplo para ilustrar a síntese, que em Evandro foi perfeita, entre o advogado e o cidadão: atuou como representante dos brasileiros no processo de impeachment de um presidente da República.
A verdade é que Evandro marcou a sua trajetória de vida pelo desprendimento e pelo servir. Extrapolou os limites da postulação privada, para atingir as de interesse coletivo.
A prova provada de seu desprendimento nós encontramos nas defesas que fez no famigerado Tribunal de Segurança Nacional, criado por Vargas em 1935. Foi o advogado que mais defendeu presos políticos sem jamais haver cobrado honorários. Exemplo de generosidade e de um idealismo do advogado que coloca o seu sagrado mister de defender acima de interesses outros. Trata-se de um exemplo para aqueles que nos dias de hoje pretendem transformar as bancas de advocacia em balcões de mercancia.
Também nesse Tribunal a missão do advogado foi cumprida acima dos seus posicionamentos políticos e empatias pessoais. Defendeu acusados da intentona comunista de 1935 e os integralistas de 1938. Evandro fez com que o direito de defesa pairasse acima das ideologias de direita e de esquerda. Como ser político tinha claros posicionamentos em face da realidade nacional, que no entanto não interferiram no exercício da defesa. Foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, juntamente com Domingos Velasco, Hermes Lima, Joel Silveira, João Mangabeira e outros.
O júri, eu creio , foi na advocacia a sua maior afeição. Da defesa de um passional, aliás chamado Otelo, em 1932, seu primeiro caso, feito ao lado do grande rábula João da Costa Pinto, até a sua defesa notável de Doca Strett, passando por Castorina a doméstica acusada de infanticídio, júri no qual teve ao seu lado Carlos Lacerda, em 1934, Evandro Lins e Silva, durante setenta anos, fez da tribuna do Júri um altar para cultuar a liberdade e imolar a injustiça e o arbítrio.
Como já dito, Evandro serviu ao interesse público cumprindo, assim, o destino traçado para os grandes advogados pelo Visconde de São Leopoldo. Foi ministro das Relações Exteriores e como tal no episódio da instalação dos mísseis em Cuba, pela União Soviética, agiu como mediador, tendo contribuído decisivamente para que a Guerra Fria não se transformasse em guerra real.
Nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, lá permaneceu durante cinco anos e quatro meses. Nesse período relatou cinco mil processos e participou do julgamento de, aproximadamente, trinta mil. Levou para a Magistratura características inerentes à advocacia. Como juiz continuou sua incansável perseguição à verdade, que na condição de advogado empenhava-se em levar para os autos. Demonstrou possuir um alto grau de compreensão do homem, com suas grandezas e suas misérias, desprovido de uma visão maniqueísta ou sectária do homem e da vida.
Como juiz não foi um aplicador mecânico da lei. Adaptar as suas decisões às condições sociais, culturais e econômicas do momento reinante e às características de cada caso, sempre foi sua preponderante preocupação. Por outro lado, chamais olvidou ser a lei insuficiente para alcançar todas as situações de conflito em uma sociedade multifacetada e em contínua transformação.
Evandro Lins e Silva, homem público admirável e magistrado exemplar, na verdade, foi uma das mais extraordinárias vocações de advogado que o Brasil conheceu.
Depois de sete anos afastado da advocacia, quando serviu o país em cargos públicos, retornou à profissão. Voltou como se fosse um recém-formado. Voltou como um imberbe bacharel, portando orgulhoso o seu diploma, ostentando com garbo o seu anel de grau e trajando vaidoso a sua beca.
Uma vez no fórum, novamente participou dos embates judiciários, sem qualquer laivo de prepotência ou de arrogância, que invadem o espírito de outros que exerceram os mesmos cargos por ele ocupados.
Dominava-oo orgulho de ser advogado e não o decorrente das funções exercidas. Passou a exibir esse orgulho nos balcões dos cartórios, nas salas de espera dos juízes, esperando para despachar ou mesmo examinando inquéritos nas delegacias. Estava ele advogado pleno outra vez.
E, essa condição o acompanhou até o fim de seus dias.
Almoçávamos no restaurante Mário, no Leme, minha mulher Ângela, Clemente Hungria, Evandro e eu, quando num arroubo de confissão, desabafo e suplica, afirmou "Mariz, quero clientes, preciso continuar a advogar". Beirava os noventa anos. Foi um canto de louvor à profissão.