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Um advogado destemido

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Atualizado em 5 de abril de 2012 09:50

Kleber Menezes Doria não aceitava ser qualificado como criminalista. Dizia ser uma expressão imprópria para designar o advogado criminal. Criminalista, segundo dizia, não seria o advogado, mas sim aquele que estudaria o fenômeno criminal, como historiador, pesquisador ou mesmo perito.

Kleber foi uma das figuras mais expressivas da advocacia criminal de São Paulo. Inteligente, culto, conhecedor como poucos do Direito Penal e Processual Penal, com sua forte personalidade marcou quem o conheceu.

Temperamento irascível, de uma franqueza por vezes assustadora, não escondia as suas antipatias e idiossincrasias pessoais.

Nós nos reuníamos, todos os dias, na lendária "Praça da Alegria", um banco localizado no segundo andar do Palácio da Justiça. Sempre que por lá passava conhecida figura dos meios forenses, carecedor de bom conceito, Kleber, em alto e bom som gritava "mãos na carteira". Nós, também, invariavelmente, colocávamo-nos de costas, meio que constrangidos, mas orgulhosos do amigo corajoso, por vezes inoportuno e inconveniente, mas sempre autêntico e veraz.

Também demonstrava de forma desabrida a sua indignação em relação à arrogância, à soberba, menos comuns naqueles tempos do que hoje, mas já existentes.

Certa ocasião, um seu colega de turma tornou-se juiz de Direito. Na primeira vez que o encontrou, após o concurso, Kleber chamou-o pelo apelido que o identificava desde os bancos escolares: "Mato Grosso", pois o novo magistrado era natural daquele Estado. Ao ouvir a alcunha, ele dirigiu-se a Kleber, orgulhoso de sua nova condição e disse: "Não me chame mais de Mato Grosso, pois agora sou juiz". Ah, péssima advertência. Inadequada e incabível por si só, mas que adquiriu um caráter de verdadeiro bumerangue pois feita para a pessoa errada ou para a pessoa certa, dependendo da ótica. A partir desse dia, quem no Fórum não conhecia a alcunha do importante magistrado, passou a conhece-la, pois toda vez que um passava pelo outro Kleber a proclamava e difundia.

Estigmatizado por graves infortúnios, a sua vida não transcorreu como ele a desejou e idealizou. Amargou desacertos e arrependimentos, mas jamais deixou de ser fiel a si mesmo.

Aliás, também fidelidade para com os seus amigos foi uma constante em sua trajetória. Com a mesma veemência que lançava críticas, por vezes ácidas e até desproporcionais, sendo implacável com o que e com quem lhe parecia incorreto, se desdobrava em atenções, carinho e intransigente defesa daquilo que acreditava e daqueles que lhe eram caros.

Kleber disputou com Anacleto Raposo Holanda, advogado da sua geração, que se notabilizou por condutas extravagantes, folclóricas e hilariantes, a proeza de eu ter sido colocado na geladeira do Centro Acadêmico 11 de Agosto.

Explico, certo dia papai levou-me ao "Onze". Eu era de colo. Assim que chegamos os seus colegas, entretidos com atividades dignificantes, tais como jogo de dados, sinuca e carteado, pararam para recepcionar-nos. Segundo consta, papai cioso do espírito paternal de seus colegas deixou que me pegassem, e lá fiquei eu passando de colo em colo. Reapareci em seguida, no colo do Chico Elefante, proprietário do bar do Centro. Segundo ele, eu fui retirado da geladeira, onde por frações de segundos fiquei, pois fora colocado por um estudante, que, possivelmente, penalizado com o calor que eu sentia, quis refrescar-me.

A identidade do autor da façanha jamais foi revelada, pois Kleber e Anacleto se foram. Durante anos, um acusava o outro de haver indevidamente usurpado o memorável feito.

No elenco de grandes advogados criminais que conheci, quando comecei a advogar, e que já não mais estão entre nós, Kleber não pode ser olvidado. O seu comportamento por muitos criticado não superava as suas qualidades de homem e de profissional. Acreditava nos valores que informam a nossa profissão. Tinha verdadeira veneração pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. O espírito das Arcadas estava não só impregnado em seu interior como ele o propagava, fazendo verdadeira profissão de fé nos princípios que o compõe, ligados ao humanismo, à liberdade, à democracia e à justiça.