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Generosidade sírio-libanesa

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Atualizado em 6 de janeiro de 2012 09:47

Nasci em um bairro onde predominava a colônia síria-libanesa. Uma prova reside no número de clubes fundados em regra por imigrantes de determinadas regiões da Síria e do Líbano. Assim, lembro-me do Antioguina, do Homs, onde havia saudosas domingueiras dançantes do Alepo, do Rachaia. Estou excluindo o Sírio e o Monte Líbano, situados um pouco mais distantes.

Em razão da convivência, algumas características desses imigrantes e de seus descendentes ficaram bem marcadas e até assimiladas por mim desde cedo. De todas, a que eu mais admirava e tenho viva na memória era a generosidade manifestada de várias formas no relacionamento interpessoal. Era um derramar de gentilezas e afagos nos carinhosos encontros que ocorriam constantemente nas vizinhanças.

No entanto, a generosidade dos libaneses e dos sírios não se limitava à efusivas manifestações de afeto quando nos víamos. Havia também outros desdobramentos da amizade e do apreço. Mostravam-se extremamente solidários e prestativos quando alguém deles necessitava. A ajuda era uma constante nos seus relacionamentos e não mediam esforços para, ao que parece, retribuir de alguma forma, a acolhida dispensada pelos brasileiros aos seus antepassados.

Para não cometer injustiças, mormente quando se trata de arrolar amigos queridos, dentre as figuras do meu mundo árabe, vou destacar uma excepcional senhora, que para nossa ventura encontra-se entre nós, e uma família cujos chefes já se foram, mas os filhos aqui estão dando continuidade a uma preciosa e já vetusta amizade.

Falando em amizade, eu agradeço a Deus a possibilidade de haver constituído e mantido amizades que resistiram às vicissitudes da vida. Arrependo-me, no entanto, por outras que eu não consegui manter e conservar. Existiram sim, amigos que já se foram, não da vida, mas do meu rol. Culpa minha, culpa deles, não importa. Importa sim que o saldo foi positivo. Eu tenho velhos e amados amigos. E, mesmo aquelas amizades já rompidas, permanecem no rol das gratas recordações.

Tenho muito orgulho em afirmar que eu e alguns amigos que possuo "nunca nos sofremos" como disse o excepcional cronista e compositor Antonio Maria.

Ademais, desta feita contrariando outro festejado escritor e cronista, Nelson Rodrigues, que disse ser o amigo "a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada de vida" eu afirmo que transformei a utopia em sonho e este em realidade.

Presentes nas minhas recordações e mais do que nelas, na minha alma, figuras queridas da colônia árabe - sírios e libaneses - com as quais tive a ventura de conviver.

Dona Izabel Nader, hoje, desculpe-me ela a indiscrição, beirando os noventa anos, mantem a energia e o vigor da idade jovem. Ela é possuidora de excepcional memória, de uma inteligência aguda e de extraordinário senso de humor. Contadora de anedotas e fina observadora da realidade, não deixa passar incólume nenhuma situação merecedora de uma irônica ou sarcástica observação. Seu carinho por minha mãe, aliás sempre presente em vida desta, foi transferido a mim, depois que a amiga se foi.

Não nos víamos fazia muitos e muitos anos. Quando assumi a presidência da OAB, em São Paulo, no dia da posse, lá estava ela na porta do Clube Paulistano, onde ocorreu a festa, acompanhada de sua neta. Foi a coroação daquele dia de grande significado para mim.

Mais alguns anos sem nos ver e passamos a falar com frequência. Ofereceu-nos, a Ângela e a mim, um magnífico jantar, ao qual compareceram seus filhos e netos, dentre eles o seu filho Charles Nader, querido amigo com quem estudei no primário do Externato Paraíso. Comida árabe por ela mesma preparada. Excepcional e farta, como sempre ocorre nas mesas libanesas. Nesse dia, D. Izabel externou todo o seu afeto dedicado a minha mãe e a mim, de uma forma que só ela é capaz de fazer.

Ângela e eu casamo-nos em 1970, e fomos morar em uma Vila situada na própria rua Stella, da minha infância e juventude. Duas eram as Vilas da rua Stella. Uma mais acima em frente ao Colégio Bandeirantes, e a chamada Vila de baixo, tendo o campo do Olimpicus à sua frente, em uma baixada.

A casa era a de número onze. Foram dois anos, até mudarmos para um apartamento da rua Treze de Maio, no Paraíso, quase Bixiga. Dois anos felizes, porém marcados pela dureza, pelas incertezas e alguma angústia, costumeiras no início de vida dos casais. Renata, nossa primeira filha, nasceu nessa casa.

Não houve nenhuma dificuldade de adaptação, pois a rua Stella era a minha rua. Assim, todos os seus moradores eram queridos amigos alguns, e velhos conhecidos outros. Na Vila todos se conheciam há muitos anos.

Nossa casa ficava em baixo da de número dez, onde residia um casal ela descendente de sírios ele de libaneses, Nadine e Augusto Bucheb. Seus filhos, especialmente José Badi Bucheb (Dua) eram nossos amigos, amizade que antecedeu nossa ida para a Vila. Creio que em meados da década de cinquenta a família mudou-se para a rua Stella, e a partir dessa época solidificou-se uma amizade que perdura até os nossos dias.

Houve o inevitável desfalque do casal, pois ambos já se foram. Durante esses anos, um carinho espontâneo, uma simpatia sem causa aparente, uma forte afeição vinculou todos nós aos Bucheb. O substrato dessa amizade coletiva foi a bondade de ambos, marido e mulher, herdada pelos filhos e manifestada em infindáveis ocasiões.

Do Sr. Augusto ficou a figura do homem de agudo senso crítico, inteligência intuitiva muito apurada e uma peculiar graça ao comentar ou narrar fatos. Ele possuía uma especial aptidão: era exímio massagista. Na verdade, era um dom. Nasceu com intuitivo conhecimento de músculos, ossos, nervos e coisas que tais. Consta ter aperfeiçoado esse dom no clube Sírio-Libanês, onde jogou futebol. Lá observava a atuação dos massagistas e desta forma foi adquirindo e aprimorando conhecimentos.

Na rua Stella, o Sr. Augusto vez ou outra cuidava dos jogadores que se contundiam nos jogos do Olimpicus e do Independente, ambos se exibiam no campo de várzea que havia na confluência das ruas Stella, Oscar Porto e Tomaz Carvalhal.

Mas, não eram apenas os craques desses dois times os beneficiários de suas habilidades. Nós que praticávamos o saudoso, arriscado e romântico futebol de rua também nos tornamos seus assíduos clientes. Eu, pela falta de jeito para os esportes em razão do meu sempre avantajado corpo, me machucava, e era no pé, frequentemente destroncado, torcido ou com algum nervo lesado.

Seu Augusto me socorria em sua casa, a de número 10 da vila. Recebia-me com um entre irônico e sádico sorriso. E esse sadismo, naturalmente simulado, pois ele era solidário à dor que eu sentia, ia crescendo à medida que sua mão tateava o meu pé para descobrir o lugar exato da lesão. Encontrado o local, aí, bem aí, era o ápice do sofrimento. Puxava, torcia, contorcia e punha no lugar. Às vezes bastava um único movimento, e o grito também era único. Seus instrumentos de trabalho eram uma bacia com água quente, um sabonete e, principalmente, suas enormes mãos que vigorosamente deslizavam pelo pobre pé enfermo.

Como eu sabia que ele jamais cobrava pelos seus valiosos préstimos, apenas para irritá-lo e meio como vingança pelo meu sofrimento, mas já com o pé consertado eu perguntava quanto lhe devia. Imediatamente, mandava-me embora, debaixo de alguns impropérios. E eu ia mancando, mas já sarado graças à impiedosa massagem.

Amigo "Rabib", como você faz falta! Desde a sua partida o meu pé nunca mais foi o mesmo...

Cada gesto seu era um gesto de amor. No curso de sua longa vida dona Nadime derramou bondade. Matriarca, ela estendia o seu manto protetor sobre sua extensa família: Seu Augusto, os quatro filhos, inúmeros netos e bisnetos. Mas, ela também cobria com afeto tantos quantos tiveram a ventura de conhecê-la.

Ângela e eu fomos dois dos inúmeros agraciados. Na verdade, fomos privilegiados, pois durante dois anos estivemos literalmente sob o seu amparo: morávamos na casa da vila abaixo da sua. O símbolo e ao mesmo tempo o instrumento de sua vigilante atenção era uma sineta. Ela a tocava várias vezes ao dia, ou para servir delicioso café feito à moda árabe, maravilhosas esfihas e outras inesquecíveis iguarias ou para indagar se minha mulher necessitava de algo, quando das minhas ausências. O desvelo dedicado à nossa recém-nascida filha Renata era o mesmo que dedicava a seus netos.

Durante esses dois anos se cristalizaram uma amizade e uma gratidão imorredouras, a esses descendentes de libaneses, Seu Augusto, e de sírios, dona Nadime, exemplos de dignidade e de amor ao próximo, ambos fruto da imigração de povos que souberam assimilar algumas de nossas características e que nos legaram algumas de suas qualidades, numa miscigenação que pode superar as diferenças dos idiomas, hábitos e cultura em geral.