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O pé de café; uma vingança futebolística

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Atualizado às 07:33

Quando eu jogava futebol e o fazia mal, chuteira era chanca e o campo era cancha. Nós, da gloriosa TS - Turma Stela - jogávamos na rua, no campo do Olímpicus da Vila Mariana, no Colégio Ipiranga, no Ateneu Brasil, na quadra da Escola Paulista de Medicina, localizada na Vila Clementino, na chácara de meu avô ou em qualquer outro espaço, transformado por nós em "campo", por menos apropriado que fosse, nós o transformávamos em "campo".

Levamos a sério a nossa atividade esportiva. Além dos locais por vezes pouco adequados, as bolas e as traves em certas ocasiões eram improvisadas. Pedras, tijolos, pedaços de madeira, sapatos, tênis demarcavam os espaços nos quais os goleadores se consagravam.

O nosso local preferido para jogarmos sempre foi a rua Stella, na altura do Colégio Bandeirantes. Dependendo do número de atletas jogávamos de um portão ao outro das duas calçadas. Caso a afluência de jogadores fosse maior a extensão da rua servia de campo. Aí, no entanto, nos deparávamos com uma grave questão. A Stella, nesse trecho, passava a ser uma ladeira. Assim, o time cujo gol se situasse ladeira abaixo tinha sérias dificuldades para atacar. Por tal razão, era muito importante a escolha do lado antes do início do jogo, pois normalmente ele era decidido no primeiro tempo.

O futebol era possibilitado pela escassez de automóveis que desciam ou subiam a rua. No entanto, havia uns poucos motoristas que não respeitavam o nosso espaço esportivo e estacionavam os seus carros nas nossas calçadas. Bem, embora tomássemos algum cuidado, apenas algum, a bola volta e meia batia em suas fortes latarias - eram carros da década de cinquenta, início de sessenta - e nos vidros, não tão resistentes. As boladas, quando eficientes, surtiam efeitos, pois dificilmente o veículo atingido voltava a ser estacionado no nosso campo.

Nossa atividade esportiva não era respeitada também por alguns moradores, que insistiam em deixar as venezianas de suas casas abertas. As janelas eram fechadas apenas com as vidraças.

Se com os intrusos automóveis, nossas cautelas eram relativas, cuidado mesmo tomávamos para que as bolas não invadissem os jardins e se chocassem com as janelas dos simpáticos sobrados da Stella.

No entanto, um ou outro chute mais violento e sem muita direção ultrapassava os pequenos muros das casas e, tragédia, a propriedade alheia era danificada.

Corríamos para salvar a bola da fúria do dono da casa, que a confiscaria, e a submeteria a uma tortura de elevada crueldade: seria rasgada até ter um fim indigno da sua relevância, seria furada.

Em uma ocasião, no entanto, as donas da casa atingidas, duas irmãs, foram mais rápidas e, sem ordem judicial, apreenderam e destruíram o nosso tesouro.

Eram duas solteironas que não nos viam com bons olhos. A recíproca era verdadeira. Com o incidente as antipatias aumentaram de intensidade.

Pois bem, algo precisaria ser feito para que a bola fosse vingada, a sua memória reverenciada e a nossa honra restituída. Sentíamos-nos humilhados.

Ai, então, surgiu a ideia. Havia no jardim do sobrado onde elas moravam um pé de café. Bonito, de meia altura, de um verde reluzente, chamava a atenção. Em razão da perda da nossa estimada e imprescindível pelota, nada mais adequado do que o pé de café. Dente por dente . . .

Ele foi cortado em uma noite de lua cheia, portanto não à luz do dia, pois não seríamos tão insanos. Mas à luz da lua. O cortamos e o deixamos encostado na porta, obstruindo a passagem das moradoras.

Imagine-se a repercussão que o nosso ato de justiça teve nas imediações. Fomos alvo de algumas críticas, mas de muitos elogios, pois as duas cafeicultoras não gozavam lá de grande prestígio na vizinhança.