COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Marizalhas >
  4. O gosto da infância

O gosto da infância

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Atualizado em 18 de novembro de 2011 14:15

Maravilhosos eram os pães franceses da Panificadora Bastos, localizada na rua Vergueiro. Lembro-me ir diariamente com minha mãe até a padaria, por volta das seis horas da tarde. Eles vinham embrulhados em papel simples, o que permitia que eu o rasgasse e beliscasse as casquinhas crocantes, fato que irritava a minha mãe, pois os pães ficavam mutilados.

É interessante como tais fatos ligados ao sabor e também ao olfato marcam nossa infância. Na verdade, é a própria infância que empresta o sabor e o aroma que impregnam os nossos sentidos e se fixam na memória. Qualquer iguaria que nos tenha marcado se vier a ser provada na idade adulta não nos proporciona o prazer do passado, mesmo sendo uma fiel reprodução da receita primitiva. A saudade da época vivida, daqueles que se foram e mesmo a saudade de nós mesmos, trazem-nos lembranças de fatos que jamais se repetirão, e se apresentam por meio dos dois sentidos.

Todas as recordações gastronômicas se fazem acompanhar de lembranças de pessoas, lugares e situações especiais.

Os pães, por exemplo, estão ligados à Panificadora que os fabricava e à minha mãe que os comprava e impedia que eu os comesse antes de chegarem ao destino.

Procuro há mais de cinquenta anos um sorvete que se equipare ao de nata da Mercearia Carioca, localizada em Santos, especificamente no Boqueirão, esquina das ruas Epitácio Pessoa e Oswaldo Cruz. Embora eu continue a procurar o magnífico sorvete de nata, sei que a minha peregrinação pelas sorveterias restará infrutífera.

Não sei com que regularidade, mas sei que ela descia a rua Stella pela manhã acompanhada do som inconfundível de um sininho. Vinha ele pendurado no pescoço de uma cabra, anunciando a chegada do leite que era vendido de porta em porta. Minha avó descia de sua casa com um ou dois copos e os enchia de um leite tirado diretamente da fonte. Espumoso e quentinho. Leite forte, substancioso, nutritivo e com um sabor inesquecível. Mas, verdadeiramente marcante era o carinho com que minha avó providenciava o leite para o neto, já à época muito bem nutrido.

Desta mesma avó, o zelo, o afeto e o carinho dedicados a mim, aos outros nove netos e a quem frequentasse a sua casa, na verdade compunham os maravilhosos doces que ela preparava. Todos eles eram à base de ovos, muito açúcar, farinha, creme, e óbvio colesterol, que, no entanto, era o bom, pois havia o ingrediente do amor.

Não se pense que se limitava aos doces as qualidades culinárias de minha avó. Não, pois havia também os salgados. As minhas lembranças sensoriais registram, ainda, as magníficas empadas de queijo e o excepcional cuscuz. Quanto a esse extraordinário prato genuinamente brasileiro anos depois eu encontrei quem se igualasse à Dna. Zizi, nome de minha avó: trata-se de nossa querida amiga Regina Rocha, mãe de meu genro Marcelo. Se o sorvete de nata, o leite de cabra, as balas de coco de minha mãe, e tantos outros sabores da infância não foram reencontrados, o cuscuz foi fiel e felizmente reproduzido.

Os gostos inesquecíveis não eram apenas os da infância. Depois das empadas, do cuscuz, do leite de cabra, do sorvete de nata, das balas de coco, com a adolescência outros vieram tão saborosos, e significativos quanto os que me marcaram quando criança.

As magníficas coxinhas da Panificadora ABC, localizada na esquina da Domingos de Moraes com a rua José Antonio Coelho. O ABC era uma instituição. Gozava de uma imaculada reputação, e deixou marcas no sentimento e na memória de todos os seus frequentadores. Não era uma padaria como as de hoje. Havia pães deliciosos, um insuperável creme de chantilly, frios magníficos, mas dois eram os pontos culminantes: a coxinha e o chope. Eu falei padaria, mas na verdade era um misto de padaria e de um bar refinado. Seu barman era o Geraldo, um querido amigo, a alma do ABC.

Se ainda era ainda comum vender-se fiado nos empórios, armazéns, farmácias e lojas, etc., fiar chopes, coxinhas , empadas, e outras bebidas e guloseimas era incomum, no entanto, o Geraldo nos fiava, e mais, burlava a lei e vendia bebida alcoólica a nós ainda menores de dezoito anos.

Os sabores do passado acompanham-me trazendo a imagem de pessoas queridas e de fatos memoráveis, protagonistas de uma época marcada pela bonomia, pela amorosidade, pela solidariedade, por gentilezas e atenções, marcas então presentes nos relacionamentos pessoais, que tornavam a vida risonha e franca, tal como as escolas da época.Esses sabores, eu creio, produzem em meu espírito o que as madelaines provocavam em Proust : a agradável sensação da "memória afetiva".