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Uma turma solidária

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Atualizado às 08:24

A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco sempre exerceu sobre mim um grande fascínio. Não me formei na velha Academia. Barrou-me um vestibular para o qual eu estava preparado. Minha letra impediu a minha aprovação. Acredito que com um pouco de boa vontade o examinador não teria colocado sobre a minha dissertação de português um implacável carimbo: ilegível. Soube da fatídica carimbada pelo saudoso amigo Fued Temer, eminente advogado e professor do Largo.

Mais benevolente em face de uma letra talvez melhor cuidada, o examinador da Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade de São Paulo aprovou-me na prova de português como o fizeram os demais examinadores. A letra nas outras provas não foi levada em conta, pois os outros exames foram orais...

Tive na Católica uma intensa vida universitária marcada por memoráveis atividades acadêmicas e por uma incansável militância política. Construí amizades imorredouras; conheci minha mulher; aprendi Direito com inesquecíveis mestres; enfim nenhuma queixa do velho convento da Rua Monte Alegre, onde está localizada a Faculdade, ao contrário, afeto e saudade são os sentimentos que me unem à querida Católica.

No entanto, embora lá não tenha estudado, minha afeição pela Faculdade do Largo de São Francisco é a mesma, caso lá tivesse me formado. Note-se que a Academia não é daqueles que lá se formaram. Não, ela é de todos, é um símbolo, adquiriu um caráter universal. O bacharel em direito está impregnado do espírito das arcadas. Liberdade, culto do espírito, solidariedade, humanismo, poesia, democracia, amor ao próximo, justiça social, são valores cultuados e cultivados desde sua fundação. A alma das arcadas é a nossa alma, os ideais são os acalentados por seus estudantes por quase dois séculos são os nossos ideais.

Eu também estou ligado à velha Academia por hereditariedade. Eu nasci quando papai cursava o quarto ano. Assim, no final de 1946, quando ele se formou, eu tinha um ano e meio, e pude assistir à sua missa de formatura.

Em determinada ocasião papai me levou ao Centro Acadêmico Onze de Agosto. Eu ainda não fizera um ano. Os estudantes entretidos com a sinuca, o carteado, o jogo de dados e outras atividades não menos nobres e dignificantes, pararam para recepcionar pai e filho. Segundo consta, papai confiante no espírito paternal de seus colegas, deixou-me passar de colo em colo, até que me perdeu de vista, fato que mobilizou a estudantada, que pressurosa passou a procurar-me. Logo me encontram nada menos do que dentro da geladeira. Com o passar dos anos, dois estudantes da época reivindicavam, orgulhosos, a autoria da façanha: Anacleto Raposa Holanda e Kleber de Menezes Dória. Um tachava o outro de mentiroso, usurpador do memorável feito.

Outro fato merece ser mencionado. Os estudantes de então, numa demonstração de solidariedade e preocupação com a infância, todas as noites após obrigatórias tertúlias etílicas no bar do Onze de Agosto, postavam-se sob a janela de um jovem e inexperiente casal residente na Rua do Riachuelo, para recordar-lhes o dever de alimentar o recém nascido, filho do casal. O alerta era candente, feito na forma de uma ordem impostergável. "Macacão acorda para dar leite para o macaquinho". A repetição da ordem provocava dois efeitos: a minha pronta amamentação e a pronta reação do pai do "macacão", meu avô, vez ou outra chamado de "macaco velho", que saía à janela e ameaçava de morte os solidários e preocupados acadêmicos.