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Verdade, erro e devido processo penal (II)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Atualizado às 07:57

3) A "abertura" à Epistemologia (ou uma concessão à doutrina da confiança epistêmica)

Se a prova judicial não pode assumir uma função (meramente) persuasiva e se já se sabe que uma resolução da questão de fato com base (apenas) no "bom senso do julgador" não projeta uma concretização que se distancie de uma mera persuasão (ou de uma persuasão pouco racional), sobreleva-se perquirir qual modelo teórico a prova judicial deveria incorporar.

Aqui, surge a primeira questão fundamental: dever-se-ia (re)fundar do zero a prova judicial ou esta seria concebida como uma espécie da prova em geral (ou da prova desenvolvida pela Epistemologia)?

Parece lógico que, se os critérios indicativos do que é verdadeiro - ou seja, os que se associam a um menor risco de erro substancial (ou de não correspondência com a realidade empírica) - são aqueles fornecidos pela Epistemologia1, o modelo de adjudicação dos fatos no processo deve principiar com uma concessão à chamada «doutrina da confiança epistêmica»2, dispensando o jurista de preocupações excessivas com a elaboração ou interpretação de normas para regular a atividade probatória.

Essa abertura à Epistemologia, assim, além de evitar um isolamento do Direito - que se tornaria um sistema hermético, alimentando-se apenas de suas próprias premissas e conclusões -, permite que o processo judicial se beneficie do refinado instrumental teórico e metodológico desenvolvido ao longo de séculos de investigação filosófica e científica.

Buscando, então, uma síntese sobre o que representaria a incorporação da «confiança epistêmica» ao processo penal, pode-se dizer que, em primeiro lugar, equivaleria a um princípio inclusivo, que tencionaria pela consideração de todos os dados/informações relevantes, ou seja, daquele/as que interferem - corroborando ou refutando - na admissão da hipótese acusatória, isso porque as razões de acreditação serão tanto mais seguras/confiáveis quanto maior completude tiver o conjunto de dados relevantes, o que repercutiria tanto em relação às fontes de prova quanto aos meios/técnicas voltadas à sua análise/exame.

Ademais, a incompletude do quadro probatório, além de poder impedir uma adequada reconstrução da realidade empírica que ficou no passado, pode gerar uma assimetria entre sua segurança (risco de erro associado) e a sua aptidão persuasiva.

Esse princípio inclusivo, para além de converter a relevância "no" critério de admissibilidade da prova, conformando uma espécie de in dubio pro admissão3, equivaleria a uma tensão de sentido para a instituição de, p. ex.: (i) poderes de requisição para os agentes da persecução na fase investigatória (discovery), assim como de um dever funcional de busca dessa completude, o que abrangeria as chamadas provas de descargo; (ii) poderes de requisição para o juiz responsável pela instrução processual4; (iii) uma permanente atualização das técnicas de coleta, preservação e exame das fontes de prova.

De outro lado, a doutrina da confiança epistêmica projeta-se sobre a tomada de decisão (valoração da prova), reclamando que a aceitação, como provada, da materialidade e da autoria de um delito dependa da existência de razões objetivas (intersubjetiváveis) que as corroborem em uma determinada medida; ou seja, primordialmente, deve-se impedir que o ato decisório emane preponderantemente de meros sentimentos, impressões ou intuições do julgador.

Tais "razões acreditadoras", além de respeitarem os preceitos da lógica, necessitariam ser consonantes com o conhecimento atualizado (retificado) acerca do funcionamento do mundo e das relações causais entre seus fenômenos, o que acarreta a premência de expurgar mitos, preconceitos, superstições e estereótipos que permeiam o senso comum ou mesmo aquele "modo peculiar de ver o mundo" do julgador.

Consequentemente, o processo decisório deve ocorrer de forma consciente, fazendo-se transparente a relação entre os enunciados fáticos verificáveis empiricamente e aqueles cuja admissão é disputada. Estes últimos devem ser admitidos com base em um raciocínio do tipo «dado (que se observou) E, porque G, é provável que tenha mesmo ocorrido H».

Em síntese, com a abertura à Epistemologia, o processo penal passa a demandar uma postura crítica do decisor (de resistência à persuasão), um método decisório e o respeito ao conhecimento validado pela Ciência.

4) A vocação epistêmica dos critérios decisórios: uma reacomodação de sentido

Formado o conjunto probatório e trazidos os argumentos das partes sobre o mesmo, surge a indagação central: qual é o papel do(s) decisor(es) no processo penal? E, mais especificamente, qual finalidade os critérios decisórios devem almejar?

Reconhece-se a dificuldade de enxergar uma ruptura teleológica entre a disciplina da valoração da prova e daquela que regula o sistema probatório como um todo, especialmente porque ambas permaneceriam comprometidas com a reconstrução de uma realidade histórica passada. Contudo, se o julgador constata que o conjunto probatório disponível é absolutamente incapaz de propiciar uma aproximação minimamente segura a essa realidade e, por conseguinte, não admite a hipótese acusatória, obviamente não estaria cometendo um erro decisório, mas, ao contrário, uma operação que cumpre justamente a finalidade desse subsistema: aferir a qualidade epistêmica do conjunto de dados incorporados ao processo.

Embora a disciplina da valoração seja parte integrante de um sistema normativo mais amplo, é essencial perceber que sua finalidade imediata não se confunde com a deste. Como dito, até a formação do conjunto probatório, a incorporação de uma vocação epistêmica ao processo penal corresponde a um mandamento de maximização das oportunidades de aproximação com a realidade histórica: busca-se o acesso mais amplo possível às fontes de prova, às técnicas de incorporação e aos métodos de exame mais eficazes. Contudo, uma vez incorporada a prova, o processo penal sofre uma reorientação de sentido. Mesmo que persista a ideia de um interesse no resgate da realidade histórica, o foco passa a ser a correta interpretação e significação do material probatório disponível.

Um resultado probatório epistemicamente adequado exige do julgador um esforço voltado a viabilizar uma compreensão precisa/acurada do significado das provas, ou seja, de sua aptidão para gerar ou converter-se em razões acreditadoras da hipótese acusatória, isso porque a aproximação com a realidade histórica do crime, neste estágio, passa a depender exclusivamente da adequada análise/valoração dos elementos já incorporados. A verdade ali buscada passa a ser, então, apenas aquela que pode ser assegurada pelo fragmento de realidade consistente nas provas disponíveis.

Dessa forma, o processo penal deixa de ser um meio para a aproximação com a realidade histórica e passa a assumir uma função de contenção: não mais viabiliza às partes - acusação e defesa - a prova de suas hipóteses, mas impõe ao julgador o dever de não distorcer o significado da prova produzida. Em outras palavras, não há mais espaço para "facilitar" o resgate da verdade histórica; o desafio passa a ser determinar o que a prova existente pode garantir sobre essa realidade.

Em síntese, enquanto o sistema probatório se ancora (também) em um ideal de verdade-descoberta, o subsistema de valoração transita para um ideal de verdade-segurança ou controle.

5) A administração do risco de erro como função da prova e do processo penal: a (in)suficiência da Epistemologia

O projetista da prova penal, mantendo os "pés no chão", deverá reconhecer não apenas que não existe um critério de verdade infalível (que reduza o risco de erro a zero), mas que o próprio critério de verdade eleito poderá não se concretizar em sua inteireza.

É que nada garante que sempre se conseguirá amealhar o conjunto probatório ideal (dotado de uma adequada completude), aliás, isso deverá ser a exceção, dada as peculiaridades de um processo judicial, onde:

(i) a preservação das provas depende muito mais de uma pronta atuação do interessado, sendo muita vez improlífera uma atuação retrospectiva;

(ii) não raro, haverá interessados em sua ocultação;

(iii) o custo para localização, apreensão e exame de um determinado elemento de prova pode ser demasiado elevado;

(iv) a incorporação da prova ao processo e seu exame devem se desenvolver na presença das partes, respeitando uma determinada janela de tempo.

Além disso, deve-se refletir também que os critérios de significação/valoração da prova serão mediados pelos julgadores disponíveis em determinado tempo e lugar, não necessariamente agentes epistêmicos virtuosos devidamente selecionados e treinados.

Isso força admitir que o melhor critério no plano teórico pode não gerar os melhores resultados práticos quando o conjunto probatório e o decisor disponível distanciarem-se de um ideal; de sorte que, na definição dos critérios de verdade judicial, por vezes será necessário escolher entre, de um lado, maximizar a acurácia/retidão de uma operação idealizada e, de outro, maximizar a acurácia/retidão média do sistema que opera em uma determinada realidade concreta5.

Não se pode desconsiderar, também, a significativa assimetria entre as consequências das duas espécies de erros: a condenação de um inocente (falso positivo) é amplamente reconhecida como mais grave do que a absolvição de um culpado (falso negativo), diferença que reflete a centralidade da presunção de inocência e o compromisso do sistema penal com a proteção das liberdades fundamentais.

A finalidade de reduzir o risco de erro no processo penal deve, então, ser combinada com a necessidade de distribuir adequadamente esse risco, privilegiando a minimização de erros que resultem em condenações indevidas, o que pode justificar, em certos casos, a aceitação de um incremento no risco de «falsos negativos».

Por tudo isso, embora não seja errado dizer que os critérios da "verdade judicial" se vocacionam a propiciar a máxima aproximação com a Verdade, forçoso reconhecer que eles não exaurem aí toda a sua funcionalidade ou, ao menos, que essa ideia de aproximação exigida pelo Direito precisa ser melhor explicada; parecendo mais correto dizer que a concepção desses critérios deve objetivar uma adequada administração do risco de erro do Sistema de Justiça, almejando:

a) a redução do risco de erro inerente ao próprio modelo teórico, aferido segundo sua projeção para um caso idealizado;

b) a redução do risco de erro do sistema que opera a realidade, aferido segundo uma perspectiva macro, pensando no seu resultado médio ou cumulado, segundo uma prognose sobre a medida da concretização do modelo teórico nas praxes judiciais;

c) a alocação do risco de erro entre os «falsos positivos» e «falsos negativos», reduzindo o risco de erro da primeira espécie à custa de um incremento (não na mesma proporção) do risco de erro da segunda;

d) a conciliação entre essas três finalidades, o que pode levar à necessidade de um ajuste dos próprios critérios de verdade, que termine por incrementar o risco de erro inerente ao próprio modelo teórico.

e) a redução de custos - não apenas econômicos, mas, sobretudo, as restrições a direitos fundamentais - inerentes à redução do risco de erro, sendo certo que alguns deles podem não valer a pena pagar.

Essa complexidade, que obviamente envolve ponderações e escolhas de natureza ética, releva a insuficiência da Epistemologia, para assumir, sozinha, a nomologia da prova penal, sendo necessária a interferência do Direito6 para, p. ex.:

a) definir o conceito de prova - o que serve e o que não serve como prova no processo penal -, mediante a imposição do que se poderia chamar de Epistemologia da Passeidade7, já que, embora o aumento das chances de correspondência entre aquilo admitido na sentença e a realidade empírica seja um interesse a ser tutelado, parece incompatível com a ordem jurídica um acerto que não se opera via reconstrução (argumentativa/analógica) de um determinado evento único do passado, mas apenas do reconhecimento de uma maior/elevada factibilidade da hipótese sob admissão8.

b) estabelecer regras de exclusão, quando concluir que uma determinada categoria de prova (fonte ou meio) associa-se a um risco de sobrevaloração incompatível com a gravidade das consequências de uma falsa condenação, o que se justifica, tanto numa perspectiva individualizada, redistribuindo o risco de erro entre um falso positivo e um falso negativo, favorecendo a ocorrência deste último, como, numa perspectiva macro, estimulando ou forçando o Estado-acusação a optar por meio de prova com a melhor qualidade epistêmica;

c) exigir o reforço oriundo de fonte de prova diversa (corroboration requirement), impedindo se admita a hipótese acusatória com base apenas em uma prova integrante de uma determinada categoria, independentemente da qualidade epistêmica que se apresente em concreto;

d) fixar standards probatórios externos - a indicação de um determinado nível mínimo de corroboração propiciado pela prova à hipótese acusatória para que esta seja admitida como (se) verdadeira (fosse).

Conclusão:

A definição dos "critérios de verdade" para o processo penal deve operar-se mediante uma abertura à Epistemologia e à Ciência, que fornecem as premissas para a construção de um modelo de adjudicação dos fatos que propicia a maior aproximação com a Verdade (ou que reduz ao máximo o risco de erro associado); entretanto, considerando, de um lado, a impossibilidade de se garantir a operação de um modelo baseado exclusivamente na Epistemologia, e, de outro, o fato de que a qualidade epistêmica da reconstrução dos fatos não é o único valor sobre o qual se estrutura o Processo Penal, faz-se necessária a intervenção do Direito, tanto para tutelar outros valores fundamentais do indivíduo, o que poderia ser visto como uma intromissão de natureza extrínseca ou contraepistêmica, como para promover uma adequada realocação do risco de erro associado ao Sistema de Justiça Criminal9.

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1 DEI VECCHI, Diego. Los confines pragmáticos del razonamiento probatório. Lima: Zela, 2020, p.  49.

[2] STEIN, Alex. Foundations of Evidence Law. Oxford: Oxford University Press. 2005, p. 113.

[3] BADARÓ, Gustavo. Direito à prova e os limites lógicos de sua admissão: os conceitos de pertinência e relevância. In: BEDAQUE, José R. S; CINTRA, Lia C. B.; EID, Elie P. (coord.). Garantismo processual: garantias constitucionais aplicadas ao processo. p. 219-260. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, p. 239-40.

[4] Não se desconhece o intenso debate sobre se (e em que medida) a gestão da prova poderia/deveria ser centralizada na pessoa do Juiz. Assim, quer porque a aproximação com a Verdade não é a única finalidade do processo penal, quer porque esta exige um método que preserve a imparcialidade do julgador, deve-se pensar, p. ex., na limitação à iniciativa instrutória do juiz, condicionando-a à provocação de acusação ou defesa, e/ou na vedação do que poderia ser visto como a conversão da instrução em uma reabertura da investigação, com a possibilidade de busca por novos elementos de prova, não integrados ao caso construído pela acusação etc.

[5] SCHAUER, Frederick. In Defense of Rule-Based Evidence Law-and Epistemology Too. Episteme, vol. 5, no. 3, 2008, p. 295-305.

[6] Para maior aprofundamento: STEIN, Alex. Foundations of Evidence Law. Oxford. 2005. p. 112 e ss; BAYÓN MOHÍNO, J. C. «Epistemología, moral y prueba de los hechos: hacia un enfoque no benthamiano». Revista Jurídica Mario Alario D'Filippo, vol. 2, n.º 4, diciembre de 2010, p. 10 e ss.

[7] Salah Kaled, em seus trabalhos de mestrado e doutorado, desenvolve essa ideia de passeidade (pastness) como uma espécie de contenção (metodológica) do conceito de prova judicial (KHALED JR., Salah H. A Busca da Verdade no Processo Penal. Para além da ambição inquisitorial. Belo Horizonte: Justificando, 2016, p. 303 e ss.); KHALED JR., Salah H. Ambição da verdade do processo penal: uma introdução. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 114 e ss).

[8] Para Jordi Férrer, se é certo que só podemos raciocinar sobre a ocorrência e o modo de ser de um fato único recorrendo a generalizações, sempre será necessário ter a disposição elementos concretos especificamente relacionados a este e que possam acreditar uma determinada hipótese que versem sobre ele (FERRER BELTRAN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid, Marcial Pons, 2007, p. 108.

[9] Registre-se, todavia, que a defesa da (não) intromissão estaria condicionada a uma prognose minimamente fundamentada, p. ex., sobre a realocação do risco de erro decorrente, dadas as condições médias sob as quais o sistema normativo se concretiza e, eventualmente, o custo de alteração do referido estado de coisas.