A flexibilização do regime de contratação de servidores públicos
domingo, 1 de dezembro de 2024
Atualizado em 29 de novembro de 2024 08:15
A mudança mais expressiva ao regime jurídico aplicável aos servidores públicos no Brasil, em hipótese, pode ser atribuída à Emenda Constitucional 19, de 1998. De base argumentativa calcada na crise do Estado por reflexos da estagnação econômica, sua elaboração teve como um dos seus principais objetivos flexibilizar o regime único, possibilitando à administração pública contratar pelo regime estatutário, ou, alternativamente, pelo regime celetista (CLT).
Referida alteração se ateve ao art. 39 da Constituição Federal, abrindo caminho para que novas contratações fossem realizadas de acordo com a necessidade de cada órgão ou entidade pública, flexibilização tida com o intuito de vislumbrar a modernização da gestão pública. No entanto, houve questionamentos sobre a constitucionalidade da referida proposta, por meio da ADI 2.135.
O objetivo principal da referida ADI envolveu a argumentação sobre a inconstitucionalidade formal da EC 19/98, especialmente sobre o caput do art. 39 da CF/88. A transcrição original desse artigo previa o estabelecimento de regime jurídico único aos servidores da administração pública direta, autárquica e fundacional, com referência à lei 8.112 de 11/12/90. Os proponentes da ação (PT, PCdoB, PSB e pelo PDT) alegaram que a emenda tinha sido aprovada à margem do quórum mínimo exigido pelo art. 60, §2º da CF/88, que exige aprovação em dois turnos, culminando em vício formal na sua tramitação.
Na data de 2/8/07, houve decisão cautelar proferida pelo STF, que suspendeu parcialmente a eficácia do caput do art. 39 da lei maior, com a redação dada pela EC 19/98. Essa decisão concedeu efeitos ex nunc, preservando a validade dos atos praticados sob o regime jurídico único, aguardando-se o julgamento do mérito. O objetivo da medida foi evitar a instabilidade no serviço público, especialmente em relação aos servidores que já haviam sido contratados sob o regime estatutário.
No julgamento do mérito, a ministra Carmen Lúcia, relatora da ação, observou a existência da inconstitucionalidade formal. No seu entender, a alteração do caput do art. 39 da CF/88, não teria alcançado o quórum constitucional no primeiro turno da votação. Disposição, essa, extremamente relevante para proteger a Carta Magna de mudanças arbitrárias ou precipitadas, sem o devido alinhamento com as Casas Legislativas.
José Afonso da Silva, em sua obra, conjecturando preocupação semelhante, ponderou que o poder constituinte derivado deve obedecer aos limites materiais e formais estabelecidos na Constituição, sob pena de inconstitucionalidade. In verbis:
Toda modificação constitucional, feita com desrespeito do procedimento especial estabelecido (iniciativa, votação, quórum etc.) ou de preceito que não possa ser objeto de emenda, padecerá de vício de inconstitucionalidade formal ou material, conforme o caso, e assim ficará sujeita ou controle de constitucionalidade pelo judiciário, tal como se dá com as leis ordinárias.1
O voto divergente foi da lavra do ministro Gilmar Mendes (redator do acórdão), o qual descartou a existência do vício formal na tramitação da emenda. No seu entender, destacando a autonomia do legislativo em interpretar a aplicar as suas normas internas, o texto aprovado transferiu a redação do §2º para o caput do art. 39 da CF/88, sendo submetido à votação em ambos os turnos. Fato esse que deu atendimento aos requisitos constitucionais e regimentais sobre a tramitação da matéria.
A sustentação da autonomia do Legislativo sobre a interpretação e aplicação das suas normas internas, encontra respaldo no respeito dos demais poderes. Neste meandro, na doutrina de Alexandre de Morais, o Poder Judiciário não deve intervir nas decisões internas das Casa Legislativas, em respeito ao princípio da separação dos poderes. Destaco:
Diferentemente, porém, ocorre com a possibilidade de controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas. Nessas hipóteses, entendemos não ser possível ao Poder Judiciário, substituindo-se ao próprio legislativo, dizer qual o verdadeiro significado da previsão regimental, por tratar-se de assunto interna corporis, sob pena de ostensivo desrespeito à separação de Poderes (CF, art. 2º), por intromissão política do Judiciário no Legislativo.2
O respeitável decano, no transcorrer do voto, desenvolveu argumentos sobre a preservação da autonomia do Legislativo em definir seu funcionamento e regras internas. Tal premissa é fundamental para evitar o controle judicial sobre questões interna corporis das Casas Legislativas. Entendimento não destoante da jurisprudência do STF, como no Mandado de Segurança 24.104 (MS 24.104/DF, rel. ministro Celso de Mello, DJe de 10/9/15), o qual reforça que o Judiciário não deve intervir nas escolhas interpretativas das normas regimentais do Legislativo, salvo em casos de flagrante violação constitucional.
Nesse diapasão, ao término do julgamento de mérito realizado em 6/11/24, o STF decidiu, por maioria, sobre a constitucionalidade da flexibilização do regime de contratação. Balizou-se a compreensão de que a adaptação das contratações, refletindo as necessidades específicas de cada órgão, será o prelúdio de uma gestão mais eficiente, refletindo uma visão mais moderna da gestão pública e, assim, contribuindo para o aprimoramento do serviço público.
Na doutrina, o tema é alvo de discussões que ponderam os benefícios e desafios dessa flexibilização. Para Hely Lopes Meirelles, a estabilidade dos servidores é uma garantia contra ingerências políticas, constituindo uma proteção essencial do serviço público, assim contextualizado:
"(...)criada pela Carta de 1938, a estabilidade tinha por fim garantir o servidor público contra exonerações, de sorte a assegurar a continuidade do serviço, a propiciar um melhor exercício de suas funções e, também, a obstar aos efeitos decorrentes da mudança do Governo. De fato, quase como regra, a cada alternância do poder partidário o partido que assumia o Governo dispensava os servidores do outro, quer para admitir outros do respectivo partido, quer por perseguição política."3
Não obstante, trata-se de medida essencial considerar os novos desafios diante da flexibilização do regime de contratação, especialmente no que condiz com o tratamento dos servidores. No intuito de entregar um serviço público de qualidade, a administração deve seguir os princípios esculpidos no art. 37 da CF/88 e, no que se refere ao princípio da eficiência, Di Pietro esclarece de forma exemplar:
O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.4
A contratação de funcionário público, dessa forma, em razão da elasticidade da decisão da Corte Maior, poderá ser viabilizada também pela CLT, além da forma convencional pelo RJU -Regime Jurídico Único. Assim, no edital, pela opção híbrida, o órgão público deve informar qual será o regime pretendido, permanecendo União, estados, Distrito Federal e municípios com a legitimidade para a escolha do mais adequado. O funcionário que for contratado pela CLT carregará os benefícios próprios da área privada, como, por exemplo, o FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, que não integra o regime jurídico único que, por sua vez, dentre outros benefícios, preserva a estabilidade.
Por fim, o julgamento da ADI 2.135 consolidou a possibilidade de flexibilização do regime de contratação dos servidores públicos, com o objetivo de se permitir uma gestão pública mais eficiente. Por um lado, uma das consequências da decisão, será a diminuição de oferta de concursos públicos pelo regime estatutário, assim como, de acordo com a perspectiva, um considerável aumento de contratação pela CLT. Referida decisão, no entanto, resguardou os direitos dos servidores que já se encontravam sob o regime jurídico único, conferindo efeitos ex nunc a ela. A flexibilização deve ser vista como uma ferramenta de modernização, mas seu uso deve ser acompanhado de cuidados e critérios para garantir que não sejam prejudicados os valores e princípios que orientam a administração pública brasileira.
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1 Silva José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 37º edição. São Paulo: Malheiros
2 Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional, 33º edição. São Paulo: Atlas, 2017, pag. 556.
3 Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, pag. 472.
4 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 31º edição. São Paulo: Atlas, 2018, pag. 112.