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"Tio Paulo" e a repercussão jurídica de um fato

domingo, 28 de abril de 2024

Atualizado em 26 de abril de 2024 11:18

Jorge Amado, com sua perfeita narrativa que algumas vezes chega a tangenciar a ficção, relata, na obra "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Água", a história de um comportado e exemplar funcionário público que, repentinamente, abandonou a família e foi viver na rua, local onde fez amigos de bebida e boemia. Depois de 10 anos veio a falecer, sendo o velório providenciado pelos familiares. Os amigos da noite, no entanto, retiraram o morto do caixão e, como se vivo fosse, sempre carregado pelos companheiros que cantavam e exibiam bebida alcoólica num ritual espontâneo, percorreram todos os lugares e bares que frequentavam. Até chegarem ao barco do Mestre Manoel e avançarem mar adentro, quando Quincas, que se encontrava sem qualquer amparo, caiu no mar e sua morte foi oficialmente declarada pelo grupo, como ele queria.

O Direito Penal, vez ou outra, parece trazer para a vida real fatos que parecem repousar, apenas e tão somente, nos livros e relatos de ficção. Com efeito, se não fosse gravado, o fato amplamente noticiado careceria de credibilidade: uma mulher buscando, durante atendimento na agência bancária, a todo custo, fazer com que seu tio, assim por ela declarado, já morto e mal posicionado na cadeira de rodas, assinasse documentos para finalização de um empréstimo bancário.

Diante da notável singularidade do fato, com a possível prática de crimes, instaurou-se o competente inquérito policial, tipificando-se a conduta em tese praticada como crimes de vilipêndio a cadáver (art. 212 do CP) e de furto tentado, qualificado pela fraude (art. 155, § 4º, inciso II, do CP), sendo que a eventual parente teve sua prisão preventiva decretada após a realização da audiência de custódia1.

Além da incredulidade fática que a todos causa espanto, tem-se diversas abordagens jurídico-penais que são pertinentes ao caso, que ensejam profunda reflexão e dificuldade para aplicação da lei penal no caso, vez que se trata de uma vítima figurante, já sem vida.

Inicialmente, destaca-se a tipificação do crime patrimonial. Por qual razão a tipificação repousou no furto qualificado pela fraude e não no estelionato?

É certo que, em ambos os crimes, a fraude está intimamente conectada com a conduta do agente. Porém, a distinção é cristalina. No furto qualificado pela fraude, o agente emprega meio ardiloso, enganoso, para burlar a vigilância da vítima, desviando sua atenção para que o objeto possa ser subtraído com segurança.

Subtrair, aqui, deve ser interpretado como a conduta de retirar o bem da esfera patrimonial da vítima, sem a sua concordância. É o exemplo clássico do "gato de energia elétrica": o agente desvia a energia elétrica da rede pública para seu imóvel, com a finalidade de consumi-la gratuitamente, pois a energia consumida não é computada pelo medidor da concessionária (que permanece íntegro - não há qualquer alteração física nele).

Já no delito de estelionato, por sua vez, a vítima acaba participando de verdadeira mise en scène, criada pelo agente para camuflar a fraude empregada. Aqui, o agente não usa a fraude para subtrair (retirar) a coisa da vítima. A fraude é empregada, pelo agente, para enganar a vítima, que acaba por lhe entregar o bem (ou o serviço, o dinheiro) voluntariamente, acreditando em uma realidade que foi propositalmente distorcida (fraude) pelo agente.

É de se atentar que no furto qualificado pela fraude, o agente subtrai (retira) o bem da vítima, por meio de fraude, que é empregada para que a ofendida não perceba a subtração. Já no estelionato, a fraude é criada para enganar a vítima, ou seja, criar uma realidade diferente e fazer com que a vítima nela acredite, para entregar o bem da vida almejado pelo agente (não há subtração, há entrega voluntária).

Nesse passo, conforme preciosas lições de Dias Júnior, "O golpe bem-elaborado e encenado, com efeito, costuma tirar muito de seu poder de envolvimento da hábil criação desse ambiente de encantamento capaz de fazer relaxar as defesas próprias do estado de vigília e estimular as atitudes tomadas ao sabor dos impulsos do momento"2.

De qualquer modo, as questões tormentosas não param aqui: muitos se indagam quanto à real e concreta possibilidade de êxito na empreitada, isto é, a atendente do banco prontamente ao perceber que algo grave acontecia, sequer deu continuidade ao atendimento e, imediatamente, acionou o serviço do "SAMU".

Logo, há que se indagar acerca da possibilidade de aplicação do artigo 17 do Código Penal: Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

É o chamado crime impossível, crime de ensaio ou ainda tentativa inidônea: o agente realiza todos os atos executórios que ele acredita serem necessários para consumar o crime, mas, por razões objetivas, é impossível que o resultado ocorra devido à inadequação dos meios utilizados ou à condição do objeto visado. Por exemplo, tentar envenenar alguém com uma substância que, desconhecido ao agente, é inofensiva.

Com isso, caberá à instrução processual o enfrentamento da (im)possiblidade concreta do meio utilizado pela suposta autora dos crimes, respondendo à questão: tendo em vista a dinâmica dos fatos, com "Tio Paulo" nitidamente sem qualquer condição de expressar a mínima vontade que fosse, poderia a atendente, naquele cenário, descuidar-se e o empréstimo ser formalizado, com a liberação do dinheiro?

No que diz respeito ao crime de vilipêndio a cadáver, mister considerar a notícia de que os médicos do SAMU constataram a presença de livor mortis (manchas de hipóstase), ou seja, depósito de sangue estagnado, em razão da cessação da circulação sanguínea. A literatura médica- legal é vasta e aponta para sua presença, em média, cerca de 2 a 3 horas post mortem.

Logo, parece mesmo estar configurado o crime tipificado no artigo 212 do CP, tendo em vista que a conduta consiste em desrespeitar ou ultrajar o corpo, ou restos mortais, de uma pessoa; seja por meio de atos de profanação, mutilação, desfiguração ou qualquer outra ação que ofenda a memória e o respeito devidos aos mortos.

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1 Disponível aqui.
 

2 Dias Júnior, José Augusto, Os contos e os vigários: uma história da trapaça no Brasil. São Paulo: Leya, 2010, p. 260.