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O corpo e o cadáver

domingo, 18 de setembro de 2022

Atualizado em 17 de setembro de 2022 16:14

A corporeidade - assim entendida como um princípio individualizante - tem por função imprimir ao homem sua realidade singular, revelando-o como pessoa articulada com as demais. Faz dele o detentor de um enorme latifúndio chamado corpo humano, que funciona como instrumento não só deambulatório mas também com inúmeras funções mais para realizar seus objetivos e, ao memo tempo, abriga, em seu interior, as vidas psíquica, volitiva e inteligente.

Tanto é que, dessa unidade intrínseca, faz fluir a dignidade da pessoa humana, compreendida na tutela voltada para a saúde física, mental e psíquica. Ocorre que, como é inevitável, toda esta construção ruirá com a ocorrência da morte e o corpo humano transmuda-se em cadáver e, como tal, tem as proteções também definidas. O Estado, responsável pelo corpo que carregava a vida humana, continua sua missão, agora com o cadáver. Criou, para tanto, o tipo penal de vilipêndio a cadáver ou suas cinzas, no artigo 212, inserindo como vítimas os parentes e amigos próximos que guardam sentimentos de respeito e admiração pelo falecido.

A responsabilidade familiar pelo cadáver vem desde a Roma antiga, época em que prevalecia fortemente a religião doméstica e somente os parentes mais próximos poderiam participar do funeral, uma vez que os mortos eram enterrados no fundo da casa, local onde se realizavam os cultos aos mortos e ao fogo, que deveria permanecer aceso para representar a imortalidade da alma. "O vivo, esclarece Coulanges, não podia passar sem o morto, nem este sem aquele. Por esse motivo, poderoso laço se estabelecia unindo todas as gerações de uma mesma família, fazendo dela um corpo eternamente inseparável".1

Percebe-se, nesta linha de pensamento, que os parentes são os responsáveis pelo cadáver, cabendo ao Estado realizar somente as ações referentes às escolhas feitas por eles em vida. A legitimidade familiar conferida legalmente conserva uma motivação de cunho eminentemente íntimo, resultante da convivência de muitos anos, em razão da revelação feita em vida por aquele interessado na doação de órgãos e do próprio cadáver.

O primeiro questionamento que se faz é a respeito da doação de órgãos, tecidos e partes do cadáver, regulamentada pela lei 9.434/97. Na modalidade post mortem, referida Lei estabelece que a doação de órgãos só poderá ser realizada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central. 

Assim, se a pessoa nada exigiu em vida, seu sepultamento será realizado no cemitério local, com a observância das normas estabelecidas pelo poder público.

Quando optar pela cremação do cadáver somente poderá ser feita se houver manifestado para a família em vida a vontade de ser incinerado, ou no interesse da saúde pública, além do caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária, conforme disciplina a lei 6015/73.

Há casos em que a pessoa em vida deixa um documento revelando que pretende doar seu corpo post mortem para uma instituição de ensino com a finalidade de realizar estudos científicos. A esse respeito, o próprio CC/02 (art. 14) considera válida a disposição do próprio corpo, no todo ou em parte, após a morte, desde que tenha por objetivo motivação científica ou altruística. Mas, mesmo assim, a palavra final ainda será da família.

Pode até ser que seja encontrado um cadáver sem qualquer identificação e, mesmo identificado, apesar das diligências feitas, não sejam encontrados seus parentes ou o representante legal. Neste caso, obrigatoriamente, será publicada a notícia do falecimento em jornal da cidade pelo prazo de 10 dias, na tentativa de encontrar os parentes. Resultando infrutífera, o cadáver será destinado às escolas de medicina para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico, consoante determina a lei 8.501/92.

Por isso que as faculdades de medicina realizam todos os anos cultos e celebrações ao Cadáver Desconhecido, projetando uma perfeita reflexão humanística em nome daquele que, de forma altruísta e solidária, doou seu corpo para a formação científica dos futuros médicos.

A rainha Elizabeth II, monarca mais longeva da história, morreu aos 96 anos e seu corpo foi exposto à visitação pública por vários dias e será enterrado na Capela familiar de Saint George, mausoléu escolhido por ela porque lá se encontram os restos mortais dos seus pais, da sua irmã e de seu marido.

É conhecida a dedicatória de Machado de Assis na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas: "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas".

Mário Quintana, por sua vez, conhecido como o poeta das coisas simples e encantado pela vida, como que querendo afugentar a morte e eliminar o pensamento a respeito do cadáver, mandou escrever na lápide de seu túmulo: "Eu não estou aqui".

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1 De Colulanges, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jean Melville. Editora Martin Clarete, 2003, p.38.