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Razões humanitárias e a prisão

domingo, 21 de agosto de 2022

Atualizado em 19 de agosto de 2022 15:24

Uma mulher condenada e cumprindo pena em regime semiaberto, alegando ser mãe de três filhos menores de 12 anos de idade, pleiteou, perante o Superior Tribunal de Justiça, o benefício da prisão domiciliar. Em tal modalidade de prisão a pessoa deve se recolher em sua residência e só poderá dela ausentar-se com autorização judicial. As instâncias originárias anteriores indeferiram a pretensão pela ausência de comprovação da real necessidade da presença materna para exercer os cuidados com os filhos, decisão que também foi adotada pelo relator do habeas corpus impetrado perante referida corte de justiça.1

A 5ª Turma, no entanto, encarregada do julgamento, concedeu a prisão domiciliar à mulher por entender que o crime não foi praticado contra os filhos, não teve emprego de violência ou grave ameaça e, também por razões humanitárias, não há necessidade da comprovação da presença materna em favor dos filhos, vez que, in casu, ocorre a presunção da necessidade do acompanhamento materno.

O Código de Processo Penal brasileiro estabelece no artigo 318, V a viabilidade da substituição da prisão preventiva pela domiciliar para a mãe com filho até 12 anos de idade incompletos. A lei  13.769/2018, por sua vez, estabelece a possibilidade da substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência. No mesmo diapasão a lei 13.257/2016, que dispõe sobre políticas públicas para a primeira infância.

Percebe-se, claramente que a legislação penal vem recebendo forte influência do instituto conhecido como razões humanitárias que, originariamente, tratava de desastres naturais, pandemias, deflagração belicosa entre nações, o drama dos refugiados e outras causas que representam a vulnerabilidade intercorrente dos povos,  e que têm por objetivo a ação solidária de um ou mais países para acudir de forma emergencial as pessoas que necessitam de apoio, abrigo, alimentação e acolhimento.

Na sociedade contemporânea o instituto experimentou um alargamento e passou a compreender também, no campo jurídico, um sentimento diferenciado, individualizado e atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana. A boa hermenêutica recomenda ao intérprete que retire do texto legal, por mais diminuto que seja, o máximo de benefício para o cidadão.

Assim é papel do julgador não se apegar com severidade à norma e sim, em casos em que há a efetivação de um direito em conflito, que faça prevalecer uma sensibilidade extremada em busca de uma solução que não se afaste dos parâmetros legais e sim que possa suavizá-los com uma recomendada dose de humanidade.

Coloca-se na balança, de um lado, a aflição e a angústia de uma mãe segregada de seus filhos e, de outro, a necessidade natural da convivência e assistência materna, cuja ausência para eles é incompreensível e pode provocar até mesmo trauma psicológico, que o pêndulo da justiça irá apontar o bem-estar das crianças como o fator mais relevante.

A razão humanitária, desta forma, vem ganhando espaço no âmbito do Judiciário que não deixa de aplicar a regra prevista para determinada conduta. Mas dá a ela uma modulação mais abrangente considerando a pessoa humana em toda sua dimensão jurídica e, principalmente, ofertando maior atenção para a dignidade consagrada constitucionalmente. Quer dizer, focar o ser humano como um ente participante de uma comunidade e conferir a ele a proteção que for necessária para a efetivação de um direito social mais relevante do que a restrição apontada legalmente.

Nenhuma dúvida de que a decisão comentada seguiu rigorosamente a interpretação mais consentânea com a mens legis. Na realidade, o que se busca é a proteção, a tutela mais adequada para as crianças e a presença materna torna-se indispensável. A própria natureza humana recomenda a convivência dos pais com os filhos, principalmente aqueles mais novos e que carecem do afeto familiar.

Neste sentido é o pensamento que norteou o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), que conferiu à criança o gozo de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, além dos demais relacionados com a sua proteção integral. Referido estatuto menorista explicitou ainda em seu artigo 6º:  Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

A coerência da lei que protege os interesses dos menores é tamanha que, no caso presente, na ausência da figura materna e se o pai fosse o responsável pelos cuidados dos filhos até 12 anos de idade, seria ele contemplado pela prisão domiciliar humanitária, conforme se observa da regra disposta no artigo 318, V, do Código de Processo Penal.

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1 Disponível aqui.