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A divulgação do estupro de Klara Castanho

domingo, 3 de julho de 2022

Atualizado às 11:54

Quanto mais a humanidade vem se desenvolvendo e se aperfeiçoando no relacionamento entre profissionais da saúde e pacientes - com a elaboração de códigos deontológicos compatíveis com o alto nível do serviço prestado - parece que, em algumas situações, vai perdendo a razão.

Há poucos dias um hospital de Santa Catarina recusou-se a praticar o abortamento em uma menina de 11 anos de idade, vítima de estupro, alegando que o procedimento não é recomendado após 22 semanas de gestação, de acordo com a publicação de uma Norma Técnica do Ministério da Saúde. A genitora da criança invocou a tutela judicial para obter a autorização quando, a contrario sensu, o pleito foi negado e a criança encaminhada para um abrigo, por determinação da Vara da Infância e Juventude. Somente após, com a recomendação do Ministério Público Federal, a menina retornou ao hospital, onde foi realizado o procedimento. Mais do que evidente que não foi observada a regra de que o aborto é permitido em caso de estupro - independentemente da idade gestacional -consoante determina o Código Penal, desde 1940.

Já mais recente, a atriz Klara Castanho relatou que foi vítima de estupro, manteve a gestação e com o nascimento entregou a criança para a adoção. Ocorre que, quando ainda sob efeito da anestesia do parto, foi abordada por uma enfermeira que ameaçou divulgar para a imprensa o procedimento feito. A atriz não conseguiu interceptar a notícia e recebeu em seu celular mensagens de um colunista contendo todas as informações do ato médico e da entrega da criança para adoção.

COREN-SP - Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo abriu procedimento para apurar possível infração ética praticada pela profissional de enfermagem.1 O MP/SP, por sua vez, informou estar investigando a ocorrência da violação de sigilo profissional imputada à enfermeira.2

Percebe-se, pelo relato feito pela atriz, que ocorreu uma quebra no vínculo obrigacional e profissional estabelecido entre a paciente e uma enfermeira que participava da equipe de atendimento. A paciente quando procurou pelos préstimos dos profissionais da saúde elegeu todos eles como depositários e guardadores de seu segredo, devidamente registrado em seu prontuário médico.

A profissional da enfermagem, além de participar como integrante da equipe de saúde, tem como princípios o respeito à vida, à dignidade da pessoa e os direitos humanos, em todas as suas dimensões, além das salutares referências dos princípios da ética e da bioética.

Tanto é que o Código de Ética dos Profissionais da Enfermagem - CEPE -, instituído pela Resolução Cofen nº 564/2017, é taxativo em seu artigo 52 quando dispõe no capítulo dos deveres do enfermeiro: "Manter sigilo sobre fato de que tenha conhecimento em razão da atividade profissional, exceto nos casos previstos na legislação ou por determinação judicial, ou com o consentimento escrito da pessoa envolvida ou de seu representante ou responsável legal."

Ora, no caso comentado, o fato não era de comunicação compulsória, nem obrigado por determinação judicial e muito menos tinha a profissional o consentimento da paciente para fazer a revelação.

A relação estabelecida entre os profissionais da área da saúde e a paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. No instante em que a paciente narrou e confidenciou à equipe médica que foi vítima de estupro e, mesmo assim, queria ter a criança e entregá-la à adoção, elegeu-a como depositária e guardadora de seu segredo, permitindo a realização de exames clínicos, obstétricos e complementares para realizar o procedimento pretendido. Tais informações são imprescindíveis e devem ser utilizadas somente para providências em favor da paciente. Tamanha é a importância deste sigilo que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que a paciente tenha falecido, permanece vivo para sempre.

Saindo da esfera ético-disciplinar e ingressando na esfera do Código Penal, em seu artigo 154 o legislador erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular.

A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Preserva, desta forma, a vida privada e a intimidade da paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e o Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão.

Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada da paciente, acarretando não só a inconveniente investigação policial, o processo judicial e até mesmo todo o noticiário propagado na imprensa fazendo relembrar um triste episódio da sua vida. A atriz nada mais fez do que agir de acordo com sua consciência e contou para tanto com a cobertura legal.

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Disponível aqui.

2 Disponível aqui.