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O último desejo e os cuidados paliativos

domingo, 20 de março de 2022

Atualizado em 18 de março de 2022 16:09

Izabel, paciente internada em um hospital do Ceará no programa de cuidados paliativos, recebeu diagnóstico de que - apesar de todo o esforço da equipe médica que a submeteu a três quimioterapias sem ter chance de receber um transplante de medula óssea - sua doença era irreversível. Diante do grave quadro, manifestou sua vontade de reencontrar o mar. Para tanto, contando com a iniciativa do programa de tratamento paliativo, realizou as necessárias transfusões de sangue e plaquetas para suportar a viagem de ambulância que a levaria para o mar. Ali chegando, buscou junto à inesquecível brisa um demonstrativo de entusiasmo misturado à gratidão e proferiu: "Todas as minhas memórias de praia são maravilhosas. O mar sempre me dá paz e harmonia. Reencontrar minha família, ainda mais na praia, foi uma das melhores coisas que aconteceu na minha vida."1

O relato é pertinente para abordar o tema a respeito dos trabalhos desenvolvidos pelos profissionais da área de cuidados paliativos. Apesar de o termo carregar o significado de atuação final, na realidade o tratamento dispensado visa conferir ao paciente de doença grave as melhores condutas terapêuticas para o controle da moléstia. A Organização Mundial de Saúde redefiniu em 2002 a conceituação dos cuidados paliativos como "uma abordagem que aprimora a qualidade de vida, dos pacientes e famílias que enfrentam problemas associados com doenças ameaçadoras de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meios de identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual".

Cuidados paliativos, nesta visão, descartam qualquer apressamento da morte, mas sim provocam o surgimento de um cuidar cauteloso para conferir ao paciente a continuidade da sua dignidade. O estertor da morte é suavizado, de acordo com a intenção demonstrada pelo paciente in vita ou nas diretivas antecipadas de sua vontade. Seria, a título de exemplo, tomar o paciente pelas mãos e com ele caminhar na sua toada, com segurança e lentamente, levantando-o, quando suas forças minarem, até o umbral que interrompe o ciclo vital. É, portanto, uma tarefa especializada, que exige muito mais do que a solidariedade humana. Daí, muitas vezes, como sói acontecer, nem mesmo os parentes poderão executá-la a contento.

Levando-se em consideração a inevitabilidade da morte, o homem, com o interesse em fazer preservar a dignidade que deve permear todos os ciclos de sua vida, elegeu agora sua finitude como sendo aquela que merece a atenção adequada. Tanto é verdade que a ars moriendi, em busca de uma morte que seja digna e compatível com o ser humano, abraçou a conceituação da ortotanásia contida no Código de Ética Médica no sentido de que, "nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal".2

A parte legal dos Cuidados Paliativos vem regulamentada pelas Resoluções na sequência apontadas: A resolução 1805/06 do CFM dispõe que, quando se tratar de fase terminal de enfermidades graves, o médico poderá limitar e até mesmo suspender os procedimentos fúteis e desnecessários para o prolongamento da vida do paciente, mas, por outro lado, deve garantir a ele os cuidados necessários para aliviar o sofrimento, respeitando sempre sua vontade ou a de seu representante legal. 

A resolução 2068/13 aprova a Medicina Paliativa como área de atuação de especialidade. A resolução 41/18 MS, por sua vez, dispõe sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos, à luz dos cuidados continuados integrados, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS).

A dor, o medo, a depressão, a insegurança, a ansiedade, o isolamento são circunstâncias que habitam a frágil vida do doente terminal, seja em decorrência de câncer, HIV/AIDS, Alzheimer e outras moléstias em estágio de irreversibilidade. A mente do enfermo, que ainda opera em meio a tanto tumulto, necessita buscar refúgio para se amparar, ou um colo para depositar suas últimas esperanças. Este espaço é geralmente ocupado pela figura do cuidador especializado, que irá entronizá-lo em uma espécie de redoma, aproximando-o do convívio dos familiares e amigos, da sua opção espiritual, de atender a realização de seus desejos quando possíveis, para que fique conectado com a dignidade da vida. Não só. Os cuidados alcançam também os familiares dos pacientes que recebem orientações para lidar com a doença e o apoio para o enfrentamento do luto.

Hoje, nota-se o surgimento de algumas clínicas e hospitais especializados nesta função caritativa e que prezam pela qualidade do atendimento, por meio de um corpo clínico com aderência na área e equipamentos necessários para atendimento rotineiro dos pacientes.

Tal desiderato faz ver que não basta somente o sucesso da ciência em proporcionar a tão ambicionada longevidade. É preciso que haja a qualidade de vida compatível com a ambição humana. E, quando vencidas todas as etapas, a pessoa defrontar-se com a terminalidade de uma doença, que tenha ela um serviço de saúde adequado em que possa receber o conforto e a atenção, refletindo, desta forma, a merecida dignidade de seus últimos dias.

Justificada e plenamente louvável a iniciativa da equipe de cuidados paliativos do hospital do Ceará.

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1 Disponível aqui.

2 Artigo 41, parágrafo único da Resolução CFM 2.217/2018.