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A maternidade de substituição durante a guerra na Ucrânia e no Brasil

domingo, 6 de março de 2022

Atualizado em 4 de março de 2022 19:15

A recente invasão das tropas russas na Ucrânia mobilizou a comunidade internacional que, além de repudiar o ato de guerra, tomou várias medidas econômicas e até mesmo de auxílio bélico para envio de aviões, navios e armas para Kiev e, ainda, imposição de sanções para minar o poderio financeiro do país invasor. É indiscutível que a guerra carrega trágicos prejuízos para o povo e para o local onde é travada, mas, como um míssil de longo alcance, atinge inúmeros outros países que há muito tempo vinham consolidando um harmonioso relacionamento junto à comunidade globalizada.

Kiev, capital da Ucrânia, abriga inúmeras clínicas de infertilidade e recebe casais brasileiros que optaram pela maternidade de substituição, considerada legal no país desde 2015, (surrogacy, assim denominada em inglês), além de armazenar os embriões criopreservados dos interessados na procriação. O procedimento, no caso de maternidade de substituição, gira em torno de 39.900 a 64.900 euros, enquanto que as doadoras de óvulos recebem de 4.900 a 11.900 euros.[1]

Perfeita e bem acabada a definição da Lei Portuguesa[2] a respeito da maternidade de substituição: "Entende-se por maternidade de substituição qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando-se aos poderes e deveres próprios da maternidade".

A maternidade de substituição, pela lei da Ucrânia, é permitida somente para casais heterossexuais que tenham problemas médicos de infertilidade e os óvulos podem ser doados tanto por voluntários anônimos quanto por familiares dos interessados. As candidatas à maternidade devem ter cidadania ucraniana, com idade até 36 anos, desde que comprovadas a saúde física e mental. Após o nascimento - tudo seguindo rigorosamente as regras de um contrato assinado pelas partes envolvidas - a mãe que exerceu a gravidez de substituição e sem qualquer direito parental, entregará a criança aos pais biológicos, cujos nomes constarão da certidão de nascimento do recém-nascido, assim como do seu passaporte. É ainda de se observar que, após o nascimento, a criança é submetida a exame de DNA visando comprovar se os interessados que contrataram os serviços de "barriga de aluguel" são realmente os pais biológicos.

Recentemente, quando foi decretada a pandemia pela Organização Mundial da Saúde, o governo ucraniano impôs a proibição de entrada no país como uma das medidas de combate ao coronavírus. Os genitores das crianças nascidas pela maternidade de substituição passaram por momentos difíceis, vez que não tinham acesso para buscar os filhos e as clínicas tiveram que se desdobrar nos cuidados exigidos pelos recém-nascidos. Tal fato reacendeu a discussão travada, principalmente na Europa, a respeito da afronta à dignidade humana da mulher que pratica verdadeiro comércio com seu corpo e passa a ser tratada como mercadoria no lucrativo comércio de "útero de aluguel".

Com a guerra em andamento no território ucraniano as clínicas de infertilidade - em razão das cláusulas contratuais protetivas às mães substitutivas e aos embriões vindos de outros países e encaminhados para Kiev ou aí produzidos - vêm monitorando e procurando sempre buscar locais seguros para os embriões, como o alojamento em bunkers, e as gestantes estão sendo transferidas para cidades próximas da divisa com a Polônia. E, em último caso, cogita-se até mesmo de encaminhá-las para outros países.

E, nesse caso, tem início novo imbróglio, pois poucos são os que permitem a prática da maternidade de substituição, como é o caso da Rússia, Tailândia, Índia e alguns estados dos EUA. Em caso de transferência para algum país em que não exista legislação a respeito da matéria, não será possível o cumprimento total do contrato. A mãe gestora, desta forma, no ato do nascimento, deverá registrar a criança em seu próprio nome e não terá condições de entregá-la para os pais biológicos. Talvez até, dependendo da legislação, possa se cogitar de eventual adoção da criança. O certo é que teremos mães substitutivas e biológicas itinerantes em busca de um local propício para a regularização registral da criança.

Diante de tantos entraves não é de se pensar em realizar a reprodução assistida no Brasil?

O procedimento é totalmente diferente. A respeito da reprodução assistida vige a Resolução 2.294/21, do Conselho Federal de Medicina, que regulamenta a matéria. As técnicas de reprodução assistida são utilizadas para auxiliar o processo de procriação, desde que exista possibilidade de sucesso e baixa probabilidade de risco grave à saúde da paciente, que não poderá ter acima de 50 anos de idade, ou do possível descendente e jamais serão utilizadas com a intenção de selecionar sexo ou outra característica biológica do futuro filho, observando que a finalidade é exclusivamente voltada para a procriação humana.

Também poderão se valer das técnicas os heterossexuais, homoafetivos e transgêneros, assim como a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina. A doação de gametas não tem caráter lucrativo ou comercial e será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores, exceto na doação de gametas para parentesco de até 4º (quarto) grau, de um dos receptores.

Quando se tratar de gestação de substituição, também conhecida como cessão temporária do útero, a cedente deverá ter ao menos um filho vivo e pertencer à família dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau, observando que o primeiro grau compreende pais e filhos; o segundo, avós e irmãos; o terceiro, tios e sobrinhos; e o quarto, primos.

Com o nascimento da criança, o registro e a emissão da respectiva certidão de nascimento do filho havido por reprodução assistida serão lavrados de acordo com o Provimento nº 63/2017 da Corregedoria Nacional de Justiça.

Percebe-se, pelo breve relato feito, que a diferença maior entre o Brasil e a Ucrânia, no tocante à reprodução assistida, reside na gratuidade da doação de gametas e da cessão temporária de útero, uma vez que a legislação brasileira considera o corpo humano e suas partes como bem extra commercium, sem qualquer perfil negocial ou lucrativo.



1 https://veja.abril.com.br/mundo/lockdown-deixa-dezenas-de-bebes-de-barriga-de-aluguel-presos-na-ucrania/

2 Artigo 8º da lei 32, de 26 de julho de 2006, que trata da Procriação Medicamente Assistida.