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A legitima defesa putativa

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Atualizado em 18 de fevereiro de 2022 17:49

A notícia foi dada até com certa serenidade pela imprensa ao relatar que um sargento da marinha, ao regressar para sua casa após uma viagem, percebeu quando uma outra pessoa se aproximava de seu carro. E, ao ver que essa pessoa fez um movimento como se fosse pegar alguma coisa na mochila, efetuou contra ela três disparos, sendo que dois a atingiram e provocaram sua morte. Ocorre que a vítima era pessoa que residia no mesmo condomínio do atirador, encontrava-se desarmada e estava chegando de seu trabalho, momento em que enfiou a mão na mochila para pegar a chave do portão da residência.

O militar compareceu à delegacia de polícia e justificou ter confundido a vítima com um assaltante. Tanto é que, após desfeito o erro, transportou-a até o hospital, local onde veio a falecer. A autoridade policial indiciou o militar pela prática do crime de homicídio culposo. O Ministério Público, no entanto, legitimado para promover a ação penal, pleiteou e a justiça determinou a mudança da tipificação para crime doloso, assim como a decretação da prisão preventiva.

Quando o Código Penal inseriu a legítima defesa como um direito de qualquer cidadão e, principalmente, como causa de exclusão da antijuridicidade, assim o fez tendo como fundamento um conteúdo ético positivo uma vez que qualquer pessoa, quando se vê diante de uma agressão injusta, atual ou iminente, pode usar dos meios necessários para repeli-la. Se assim não fosse, o próprio Estado homologaria a injustiça. É a configuração da legítima defesa real, ou propriamente dita.

No caso relatado há uma situação diferenciada que faz a ação se deslocar para o campo da legitima defesa putativa. O verbo putare em latim tem o significado de julgar, pensar, acreditar, envolvendo diretamente a representação errônea que o agente faz de uma situação objetiva. Trata-se das descriminantes putativas, previstas no art. 20 § 1º, do Código Penal, in verbis: É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.

Tal determinação torna imperiosa a análise plenamente subjetiva da conduta do agente. Ainda que tarefa de imensa dificuldade e deveras trabalhosa, deve o aplicador do direito buscar atingir o centro volitivo do autor dos disparos, no sentido de aferir sua real intenção e assim determinar se houve um erro plenamente justificável (escusável) em sua conduta. Verifica-se, pois, de acordo com o artigo citado, a ocorrência das conhecidas descriminantes putativas, que nada mais são do que um erro do agente, que supõe uma situação que, se de fato existisse, tornaria sua ação lícita, escudada pela lei.

Evidente, portanto, a árdua tarefa do magistrado, que precisa extrair dos elementos colhidos nos autos a clara evidência de que o agente só poderia agir da maneira como agiu. É preciso decifrar a imaginação do agente, a ponto de concluir que, de fato, qualquer pessoa na sua posição, agiria da mesma forma. Seria uma reconstituição subjetiva e contaria objetivamente com as circunstâncias que circundaram o fato, como o horário, a iluminação do local, o estado anímico, o medo, o receio do agente, a necessidade de fazer uso da arma de fogo, eventual diálogo ocorrido antes dos disparos, a presença considerada ameaçadora da vítima, com seus gestos e sentido de caminhar. E a referência para tal situação repousa na conduta do homo medius, quer dizer, se a ação praticada pelo acusado seria certamente a mesma que outra pessoa qualquer em seu lugar.

O cérebro humano tem suas regras, pode criar uma sucessão de imagens visuais refletindo não uma situação real, mas sim aquela que é proveniente da percepção falsa. O certo é que o cérebro tem suas regras e cria suas imagens de acordo com a realidade que lhe é apresentada e as constrói segundo a catalogação pré-existente do objeto, levando-se em consideração uma série de fatores externos. A visão que se cria pode ser falsa no tocante à identificação de eventual arma, porém, pelo estímulo do momento e pelas circunstâncias, faz ver a existência de algo verdadeiro e que reclama uma ação imediata.

O neurocientista Damásio, que há muito tempo destrincha os processos neurais envolvendo o cérebro e o corpo, salienta: Em suma, o cérebro mapeia o mundo ao redor e mapeia seu próprio funcionamento. Esses mapas são vivenciados como imagens em nossa mente, e o termo "imagem" refere-se não só às imagens do tipo visual, mas também às originadas de nossos sentidos, por exemplo, as auditivas, as viscerais, as táteis.1

Se o Direito é uma ciência interpretativa, o Direito Penal ganha ainda mais relevo quando perquire a apreciação do elemento subjetivo do agente causador de uma determinada conduta. Há necessidade de uma apreciação cum grano salis para se encontrar o elemento norteador da conduta para pinçá-lo com total segurança e avaliar toda a extensão do iter criminis. A investigação a ser feita terá como palco o resultado da ação comparada com a configuração engendrada pela pessoa. Pode se dizer que é escavar a profunda abstração da mente do agente.

Qualquer deslize interpretativo pode provocar uma enorme injustiça. É tênue e muito sensível o ponto de determinação da vontade do infrator, que irá exigir uma concentração ampliada para atingir tal intento. Deste modo, cabe ao Ministério Público uma verdadeira ginástica interpretativa na formulação da denúncia e ao Judiciário alcançar a real intenção imaginária do agente, para que se possa atingir o fim previsto na lei penal.

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1 Damásio, Antonio R. E o cérebro criou o homem. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.33.