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O dolo na nova lei de Improbidade Administrativa

domingo, 5 de dezembro de 2021

Atualizado em 3 de dezembro de 2021 15:26

Toda mudança legislativa traz profundas e relevantes alterações no mundo jurídico compreendendo desde a retroatividade da lei mais benéfica até uma nova leitura a respeito do fato antes reprovado. Tal fenômeno alcançou a lei 14.230/21, que trouxe em seu bojo a expressa revogação da improbidade administrativa na modalidade culposa. Assim, pela configuração atual, as múltiplas condutas descritas no artigo 10 da lei anterior, foram levadas de roldão e passaram a exigir, juntamente com as descritas nos artigos 9º e 11 da novatio legis, a ocorrência de dolo, assim definido: Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente.

A delimitação da conduta exclusivamente dolosa abre espaço para a aplicação do permissivo constitucional da retroatividade in mellius. Assim, o agente condenado pela prática de improbidade em qualquer das modalidades culposas, pode pleitear a revisão do julgamento, ou até mesmo, se a ação estiver em curso ou em estágio recursal, requerer a aplicação da lei não incriminadora, pela perda do fato gerador que provocou a conduta descrita na peça vestibular.

Tamanha a ratio legis que motivou a alteração que ficou mais do que evidenciado que há necessidade inconteste de demonstrar a comprovação do ato doloso praticado pelo agente público, pelo agente político, pelo servidor público e, de uma forma abrangente, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades públicas, estendendo-se até mesmo ao terceiro que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra dolosamente para a prática do ato de improbidade.

A sinalização da nova lei exige muita cautela na investigação da vontade do agente. É necessário que se faça uma pesquisa apropriada para encontrar pelo menos má-fé ou qualquer outro comportamento incompatível e desonesto do administrador público com o escopo de violar o ordenamento jurídico protetivo e que desague na reveladora conduta ímproba, capaz de comprometer o patrimônio público e social. Fica definitivamente afastada a possibilidade de se inserir na peça inicial uma afirmação genérica, com expressões abertas, sem conteúdo de especificidade e que não indique, de forma clara, precisa e transparente a dosagem do dolo do agente. A esse respeito, em esmerada definição, Simão esclarece didaticamente: As condutas ímprobas são aquelas permeadas de má-fé (do latim malefatius). Má-fé, na terminologia jurídica, designa o fato jurídico desencadeado pela maldade, em oposição a boa-fé. Representa a fraude, a corrupção e o dolo, por exemplo. Nesse sentido, quando descrevemos juridicamente que uma pessoa agiu de má-fé, estamos dizendo que ela agiu com fraude ou dolo.1

Diga-se, até mesmo para sustentação da novatio legis, que os tribunais superiores, de longa data, vinham buscando a imprescindível comprovação do dolo para a configuração do ilícito administrativo na actio improbitatis, tanto pelo cometimento isolado pelo administrador público como também com relação àqueles que se acumpliciam com ele.

É de se observar que, pela alteração legislativa, a ação para a aplicação das sanções de que trata a lei será proposta exclusivamente pelo Ministério Público. Diante da nova realidade, há necessidade de uma mudança estratégica na atuação do parquet que, desde o nascedouro da investigação ou do inquérito civil, deve perquirir de forma intensa a conduta dolosa do agente. Não se trata de uma tarefa de fácil realização e sim de um grande desafio para perscrutar o elemento subjetivo projetado pelo gestor público imbuído da intenção de lesar e fraudar a integridade do patrimônio público. O foco da investigação deve se concentrar nas ações ilícitas praticadas que poderão proporcionar material mais do que suficiente para aquilatar o desiderato do agente infrator. O dolo, como é sabido, transcende a vontade interior do agente e vai ser refletido em sua conduta externa. Daí que a valoração do resultado em muito contribuirá para a formatação do designío subjetivo;

O inquérito civil, instrumento de investigação criado no âmbito do Ministério Público de São Paulo - após palestra proferida pelo promotor de justiça José Fernando da Silva Lopes em reunião realizada pelo Grupo de Estudos da Associação Paulista do Ministério Público, na cidade de Ourinhos, interior de São Paulo (21/06/1980) - embora previsto inicialmente para a ação civil pública, pode ser utilizado também para apuração de improbidade administrativa, desde que especifique seu objeto. Além de colher as provas pertinentes para o alicerçamento da ação principal, tem que convencer o próprio titular da ação a formar sua opinio delicti a respeito de ocorrência que ofenda a ordem jurídica prevista e os interesses sociais protegidos. Com tal rigorismo é de se concluir que muitos procedimentos instaurados na fase administrativa serão arquivados pelo Conselho Superior do Ministério Público, se provocado, em razão da ausência de dolo. Os que vencerem essa etapa forçosamente trarão provas inconcussas a respeito do elemento subjetivo, com maior chance de vingarem.

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1 Simão, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. Leme/SP: Editora JH Mizuno, 2017, p. 86.