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A morte desautorizada

domingo, 17 de outubro de 2021

Atualizado em 15 de outubro de 2021 10:49

"Para mim, a morte é um descanso"
Martha Líria Sepúlveda

As redes sociais divulgaram notícia a respeito da colombiana Martha Líria Sepúlveda que, com 51 anos de idade, portadora de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), já com precária ambulação e experimentando muitas dores e inúmeras limitações, porém não hospitalizada, conseguiu autorização judicial da Suprema Corte do país para praticar a eutanásia, mesmo não se encontrando em estado terminal. Na realidade, a Corte colombiana, que já conferia direito à eutanásia, ampliou seu entendimento e possibilitou o pedido da autora da ação, que até já providenciara a data para a realização do seu intento, no dia 10 de outubro do ano em curso.1

Ocorre que a clínica responsável, no entanto, suspendeu a realização do procedimento em razão da paciente não se encontrar com doença em estágio terminal, constatação que conta também com a adesão do Ministério da Saúde, que irá criar um comitê para avaliar a revisão do procedimento. A Colômbia foi o primeiro país da América do Sul a autorizar, desde 1997, a prática da eutanásia, com a exigência da autorização do paciente ou de seu representante, que o doente seja declarado em estágio terminal e que a intenção seja voltada para abreviar o sofrimento.

Percebe-se que a conduta narrada apresenta uma aproximação entre a eutanásia e o suicídio assistido, esse não permitido no país. Ambos não se confundem. A eutanásia é o ato pelo qual o médico pratica um ato específico para colocar fim à vida humana em estado irreversível e terminal, antecipando a morte do paciente. O suicídio assistido vem a ser a vontade expressa pelo doente, que se encontra em perfeitas condições mentais, de dar fim à sua vida realizando ele próprio os atos para garantir o seu intento, sempre orientado por médico, em razão de uma determinada doença. "No suicídio medicamente assistido, esclarece o sempre lembrado bioeticista Pessini, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida".2

É desejo insculpido na sabedoria popular que toda pessoa tenha uma morte rápida, sem o calvário de qualquer sofrimento, isto após ter vivido intensamente a vida. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente.

O direito de autodeterminação se faz presente no caso acima relatado. A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim à renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante.

Pode-se até dizer que se trata de uma morte voluntária, consensual do paciente em busca da morte com dignidade, após constatar que não há mais intervenção médica para estagnar a doença ou até mesmo administrá-la. Pode-se até dizer que se ingressa em um procedimento médico regrado pela antiga parêmia do voluntas aegroti suprema lex, no sentido de que o paciente tem o direito de decidir a respeito de sua morte, desde que ela se avizinhe de forma inequívoca. Com a maestria acadêmica que lhe é peculiar, D'Agostino assim se expressou: "Eis porque a vida humana, mesmo a vida doente, mesmo a vida perdida nos labirintos da loucura ou afundada nos abismos do coma irreversível, nunca pode perder a dignidade: porque continua sendo vidas ao lado de vidas, fonte e doadora de significados mesmo quando nem mais o perceba."3

É até difícil aparentemente aceitar a postura da paciente colombiana que não se encontrava no estertor da morte e nem mesmo internada em ambiente hospitalar. Além do que, pelo que se sabe, a doença é grave, mas não minou todas as suas forças a ponto de tornar a vida insuportável, circunstância essa que determinou a suspensão do procedimento pleiteado. Nessa linha de pensamento, qualquer doença degenerativa grave acarretaria idêntico final de vida.  

O divisor agora determinante é justamente a autonomia da vontade do paciente, encartada definitivamente na dignitas hominis. Abre-se, desta forma, um enorme espaço de reflexão no caminhar de uma realidade nova que descortina um século que, obrigatoriamente, para a sobrevivência da humanidade, deve ser destinado ao processo de humanização. Não é de se levar em conta única e exclusivamente a intenção do paciente e sim colher também a manifestação médica no sentido de justificar que não há qualquer perspectiva de tratamento para combater a doença e que o sofrimento será cada vez mais acentuado e insuportável na já existente agonia terminal.

No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido e também da eutanásia, ambas modalidades incriminadas no Código Penal. Alguns países, no entanto, legalizaram e adotaram tais condutas, como é o caso da Colômbia, com relação à eutanásia somente.

O próprio desenvolvimento cultural da sociedade brasileira vem oferecendo reflexões a respeito da finitude da vida, principalmente quando o paciente for declarado terminal, em estado de irreversibilidade. Daí que aflorou a conceituação de morte humanizada, tendo como sustentáculo o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado na Constituição Federal. Basta ver a introdução da ortotanásia no Código de Ética Médica (resolução CFM nº 2.217/2018), que permite ao médico, após ouvir o paciente, se lúcido, ou seu representante legal, suspender toda a obstinação terapêutica e introduzir medicamentos para aliviar a dor e o sofrimento, com a oferta de cuidados paliativos. É o encaminhamento humanizado para a morte.

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1 Disponível aqui.

2 Pessini, Leo. Eutanásia - porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127.

3 D'Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da Filosofia do Direito. Tradução: Luisa Raboline - Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2006, p. 203.