Esterilização voluntária
domingo, 19 de setembro de 2021
Atualizado em 17 de setembro de 2021 10:44
A lei 9.263/1996, que trata do planejamento familiar, em seu artigo 10, inciso I, quando cuida da esterilização voluntária realizada no âmbito do SUS, em uma das causas permitidas, estabelece "que o procedimento é permitido em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce."
E, mais adiante, no § 5º, do inciso II, estabelece taxativamente: "Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges."
A leitura conjugada das exigências acima, até mesmo por quem não tem um trato próximo do Direito, leva à conclusão de que o Estado demonstra, de forma inequívoca, uma inadequada e incompatível ingerência na vida íntima do casal, além de envidar esforços para o aumento da prole. Cabe aqui recordar, em sentido contrário, o exemplo de intervenção estatal habitacional da China. Na década de 1970, foi adotada a política do filho único por casal. Em 2016, aumentou o limite para dois filhos e, em maio de 2021, três filhos. Se, por um lado, desacelerou o crescimento populacional, por outro acabou provocando um desequilíbrio de gênero, vez que no último censo eram 34,9 milhões a mais de homens do que mulheres.1
O tema foi ancorado pela Constituição Federal que deixou explicitado que a dignidade da pessoa humana, apontada como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, aliada à paternidade responsável, possibilitará um planejamento familiar de acordo com a deliberação do casal (art. 226, § 7º).
O Código Civil, por sua vez, na mesma esteira constitucional, reitera que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas (art. 1.565, § 2º). E o mesmo estatuto sacramenta que é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família (art. 1.513).
A lei 9.263/96, apesar de ter sido editada após a Constituição Federal, não observou as cláusulas legais atinentes à autonomia da vontade do casal, como sendo um espaço integrante da dignidade da pessoa humana. Foi por demais excessiva quando exige o consentimento expresso de ambos os cônjuges para a realização da esterilização voluntária. Invadiu não só a esfera íntima do casal como, principalmente, a determinação a respeito dos seus direitos sexuais e reprodutivos, provocando uma lastimável colidência com a garantia assegurada constitucionalmente.
Quando se fala que a fundamentação da esterilização precoce voluntária integra o largo horizonte do princípio da dignidade da pessoa humana nada mais é do que a revelação inconteste de um direito amplo, abrangente, difuso até, e que perpassa as definições costumeiras atribuídas pelos doutrinadores. No instante em que a Constituição oferece sua programação de direitos direcionados ao cidadão, está descrevendo que toda a carga positiva e tuteladora deve ser obedecida pelo Estado e a sua recusa passa a constituir uma ofensa ao próprio direito fundamental.
É nesse patamar que se insere a autonomia da vontade do casal para decidir livremente, de acordo com os direitos conferidos pela legislação, a respeito do planejamento familiar. Qualquer inserção do Estado, mesmo que calcada em políticas públicas específicas, que venha a se opor à decisão tomada pelo casal, arranha o núcleo protetivo da dignidade da pessoa humana.
É interessante observar que a exigência da autorização de cônjuge foi até além do texto original da lei, que teve como objetivo a intervenção cirúrgica. Algumas Unidades Básicas de Saúde vêm exigindo a assinatura do companheiro da mulher no termo de consentimento para a inserção do dispositivo intrauterino (DIU), que pode ser retirado a qualquer tempo.2 É um desprestígio à autonomia da mulher que é a única responsável pelo seu próprio corpo.
O desnível legislativo, que perdura já por muitos anos, deve ser corrigido e ajustado ao conteúdo constitucional programado. Para tanto já foram intentadas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal contra os dispositivos da lei 9.263/1996, sendo uma pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que leva o número 5911, e a outra pela Associação Nacional de Defensores Públicos, número 5097.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.