Crime de homicídio sem cadáver
domingo, 29 de agosto de 2021
Atualizado em 27 de agosto de 2021 11:00
A imprensa noticiou que uma mãe, contando com a colaboração da companheira, matou o filho de 7 anos de idade e jogou seu corpo nas águas do Rio Tramandaí, no município de Imbé, no litoral do Rio Grande do Sul. O corpo do menino, até o presente, apesar de todas as buscas realizadas pelos integrantes do Corpo de Bombeiros e outros colaboradores, não foi encontrado.1
Não se pretende aprofundar nos motivos determinantes do fatídico crime de homicídio duplamente qualificado (motivo fútil e impossibilidade de defesa da vítima), além dos tipos penais referentes à tortura e à ocultação de cadáver, e sim, sob o prisma processual, analisar detalhadamente a ocorrência de um crime sem a comprovação da sua materialidade.
O jejuno em Direito vai questionar a respeito da possibilidade de se intentar uma ação penal contra as prováveis responsáveis pelo crime sem o encontro do cadáver e poderá mesmo levantar a possibilidade da ocorrência de um crime perfeito. Isto porque a legislação penal brasileira trabalha com o binômio autoria e materialidade para se dar início à persecução penal. Exige-se a prova da autoria, consistente na autoria mediata, intelectual, de execução, coautoria e participação e a consequente materialidade do delito, que vem a ser o representativo probatório do vestígio deixado pelo crime. Assim, elucidada a autoria, mas sem o comprovante da materialidade, de regra, seria impossível a propositura da ação penal.
Basta ver que o Código de Processo Penal determina que, em infração que deixa vestígio, como é o caso do homicídio (delicta factis permanentis), faz-se o exame de corpo de delito chamado direto, no próprio cadáver, pelo perito. Mas, se ausentes os vestígios sensíveis do crime, a lei processual penal admite a realização do exame indireto, utilizando-se preferencialmente de testemunhas ou documentos. O juiz, neste caso, indagará as testemunhas a respeito do crime e de suas circunstâncias para se chegar à materialidade.
O que não se permite é a confissão do acusado suprir o exame de corpo de delito direto ou indireto quando a infração deixar vestígios. Preserva-se, acima de tudo, o princípio constitucional do réu não produzir provas contra si mesmo, levando-se em consideração que é obrigação do Estado coletar todas as provas necessárias para o processo, em razão do ônus probatório que a ele incumbe.
No caso específico, pela apuração policial, além das duas envolvidas, nenhuma outra pessoa presenciou a prática delituosa. Ocorre, porém, que os indícios que gravitam em torno do fato, representados pelos vídeos e conversas encontrados pela autoridade policial nos celulares de ambas, dão conta de que a criança era vítima constante de tortura física e psicológica, além de trazerem a informação no sentido de que ambas pretendiam constituir uma nova família e a criança não fazia parte de tal projeto. Além do que câmeras de segurança flagraram a mãe, acompanhada da companheira, carregando uma mala pelas ruas da cidade, em cujo interior se encontrava o corpo da criança, em direção ao rio onde foi lançado, roborando, desta forma, a confissão ofertada pela mãe.
Nos casos de homicídio sem o encontro do cadáver e sem testemunha, a prova pericial ocupa lugar de destaque. A tecnologia científica da prova brasileira, de padrão semelhante à desenvolvida pelos países mais avançados, invade o trabalho pericial e oferece laudos minuciosos, da mais alta credibilidade, com um embasamento científico suficiente para comprovar a contento a materialidade de um crime. Juntando-se todas as provas consideradas pertinentes, os laudos periciais formarão o conjunto de convicção mais apropriado e viável para o deslinde do fato considerado ilícito.
Apesar de o Código de Processo Penal demonstrar certa preferência pela prova testemunhal, admite também a pericial que, hodiernamente, vem assumindo uma posição de confiabilidade e segurança, em razão da aplicação dos mais recentes métodos da inteligência policial aliados à tecnologia altamente científica da Polícia Técnico-Científica. O perito invade o universo microscópico com equipamentos eletrônicos de última geração e retorna com o relato seguro a respeito do fato perquirido. Basta ver o resultado do julgamento dos Nardoni, que possibilitou a condenação sem o suporte da prova testemunhal.
O Ministério Público já ofereceu a denúncia contra as duas envolvidas, que se encontram presas em razão da prisão preventiva, com relação à mãe, e temporária, com relação à companheira. Vários outros objetos foram apreendidos na residência, dentre eles a mala utilizada, e serão submetidos à perícia com chances de oferecerem um quadro probatório ainda mais seguro e confiável a respeito da materialidade.
Resta observar que, por guardar certa semelhança com o presente caso, um ex-policial foi julgado no dia 26/8/2021, pelo Tribunal do Júri de Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte, e condenado a cumprir a pena de 22 anos de prisão por participar do homicídio de Eliza Samudo, ocorrido há 11 anos, cujo cadáver não foi encontrado.2
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.