Novas regras da reprodução assistida
domingo, 27 de junho de 2021
Atualizado em 25 de junho de 2021 13:30
Na medida em que a tecnologia da procriação assistida vai caminhando a passos longos - demonstrando de forma inequívoca o objetivo de solucionar sérios entraves à reprodução humana - cresce a necessidade de se estabelecer um regramento consentâneo não só com o desenvolvimento científico, mas, também, com as premissas e normas legais.
Na ausência de legislação ordinária a respeito da matéria, apesar do permissivo legal previsto no artigo 226, § 7º da Constituição Federal, no sentido de propiciar recursos científicos para o planejamento familiar, consistente na indicação de métodos e técnicas de concepção aprovados cientificamente e sem qualquer risco à saúde dos participantes, conforme preceitua a lei (lei 9.263/96), o legislador ordinário não cuidou de elaborar as normas e diretrizes relacionadas com o direito de procriação. As estrategicamente introduzidas no artigo 1.597, incisos III, IV e V do Código Civil, que ensaiaram os primeiros passos na regulamentação da inseminação artificial heteróloga e a fecundação artificial homóloga, não foram suficientes.
Desta forma, diante da lacuna existente, o Conselho Federal de Medicina, no uso de suas atribuições legais e legitimado, portanto, para estabelecer as normas éticas e as técnicas recomendadas para o procedimento, vem, reiteradamente, editando resoluções que se apresentam como dispositivos deontológicos a serem seguidos pelos médicos na utilização das técnicas de reprodução assistida.
Resolução, como é sabido, é um ato administrativo interna corporis que tem por finalidade disciplinar matéria da competência de determinado órgão, no tocante à regulação ética e técnica, com o potencial de produzir efeitos externos. Na hierarquia legislativa situa-se, no entanto, abaixo da lei, tanto pela necessidade da composição legislativa, formada por deputados e senadores para sua elaboração, como pelo seu comando geral erga omnes. Tanto é que várias resoluções foram editadas a respeito da mesma matéria pelo Conselho Federal de Medicina, em curto lapso temporal: resolução 2013/2013; resolução 2121/2015; resolução 2168/2017 e resolução 2283/2020. Nenhuma lei, no entanto, foi elaborada.
Ocorre que, em razão da evolução constante da biotecnologia, quando ainda se está vivenciando uma nova técnica e procurando se ajustar a ela para atingir resultados cada vez mais satisfatórios, outra invade o mercado e dita regras mais precisas, sempre com o intuito de buscar o aperfeiçoamento das práticas anteriores.
Assim é que o Conselho Federal de Medicina editou a nova resolução 2294, em maio de 2021, que revogou as anteriores e tem como objetivo atualizar os critérios utilizados na reprodução assistida no país. Dentre as inserções feitas, algumas merecem destaques relevantes.
A primeira delas, bem ponderada com a realidade, é relacionada com o anonimato entre o doador e receptor de gametas que cai por terra quando se tratar de ocorrência de doação entre parentes até o 4º grau, observando que o primeiro grau compreende pais e filhos; o segundo, avós e irmãos; o terceiro, tios e sobrinhos e o quarto, primos, desde que não incorra em consanguinidade.
A segunda, com uma aparência mais radical, consistiu em limitar a oito o número de embriões a serem gerados em laboratório e disciplinar rigorosamente a transferência em obediência à idade da receptora, assim como às características cromossômicas do embrião. Diferentemente da regra anterior, mulher com 37 anos de idade poderá transferir dois embriões e, acima dessa idade, até três embriões. A redução do número de embriões a serem transferidos teve como causa a tecnologia mais apurada e o sucesso reconhecido do procedimento, com alta taxa de aproveitamento.
A terceira, no caso de maternidade de substituição, a cedente temporária de útero, além de pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau, deverá ter ao menos um filho. Fica, portanto, excluída eventual parente que não tenha filho e interessada em colaborar com o projeto de gestação de substituição. Nesse caso, os interessados deverão buscar voluntária fora do âmbito familiar. O requisito agora exigido, que não estava compreendido na Resolução anterior, tende a dificultar a realização da proposta de procriação. Ora, se a intenção é favorecer e incentivar cada vez mais a procriação para os casais com problemas de infertilidade, a exigência é um plus desnecessário.
Por derradeiro, causa certa estranheza a exigência contida com relação à criopreservação dos embriões. A Resolução é taxativa em afirmar que os embriões criopreservados, compreendendo também aqueles considerados abandonados - no caso em que os responsáveis descumpriram o contrato preestabelecido e não foram localizados pela clínica - com três anos ou mais, poderão ser descartados, se essa for a vontade expressa dos pacientes, mediante autorização judicial. Apesar de o Conselho demonstrar a preocupação pela matéria e imbuído das melhores intenções, dá-se a impressão que é despicienda a exigência da autorização judicial, até mesmo pela diretriz da autonomia da vontade do paciente que norteia a Resolução em comento.
Como é sabido, há uma relação contratual linear entre os pacientes e a clínica que aplica técnicas de RA, materializada por documentos assinados, dentre eles o Termo de Consentimento Esclarecido, e que representam, de forma inequívoca, a vontade existente entre as partes no tocante à criopreservação dos embriões. Tanto é que a Resolução é explícita em seu comando: "No momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los."
Não há, pois, exigência de se invocar a tutela jurisdicional, uma vez que a manifestação expressa pelas partes, por si só, é suficiente para decidir o destino dos embriões congelados. Trata-se de um interesse de cunho pessoal, limitado aos participantes do projeto de procriação, sem qualquer participação do Judiciário como interveniente obrigatório.