Limites da autonomia da vontade do paciente
domingo, 28 de março de 2021
Atualizado em 26 de março de 2021 11:15
Uma paciente procura por médico em plantão hospitalar e solicita a ele a prescrição dos medicamentos cloroquina e azitromicina, demonstrando total desinteresse em fazer o teste da Covid-19, assim como do exame eletrocardiograma solicitado pelo profissional da saúde, mas ponderou que assinaria o termo de consentimento caso seu pleito fosse atendido. Ainda durante o atendimento o médico convocou cinco outros colegas e ponderou à paciente que não se sentia confortável em prescrever os medicamentos, tanto em razão da ausência da comprovação científica da eficácia dos fármacos como também pela falta dos sintomas da doença e eventual uso poderia acarretar efeitos colaterais com sérios danos à saúde.
A paciente, não conformada, ameaçou registrar boletim de ocorrência a respeito da negativa, assim como de ingressar com ação contra o médico, além de expressar em sua página no Facebook seu inconformismo com a recusa apresentada. Na realidade foi o médico que invocou a tutela jurisdicional por dano moral e logrou êxito.
A autonomia da vontade do paciente, vista sob o relacionamento linear com o médico, constitui hoje a pedra angular do Código de Ética Médica, como previsto na resolução 2217/2018. Tanto é que é vedado ao médico "deixar de obter o consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte", conforme dispõe o artigo 22 do referido Código Deontológico.
Mas para que o paciente ou seu representante legal possa dar o consentimento, faz-se necessário que as informações e esclarecimentos sejam passados de forma clara e precisa no linguajar do leigo e não do profissional, para que não paire qualquer dúvida a respeito da proposta do procedimento, sem olvidar ainda que o paciente é detentor do direito de fazer as perguntas que julgar convenientes. De forma bem didática, Dantas e Coltri explicam: "Por adequação entende-se a prestação das informações sobre o quadro do paciente, quais são as opções de procedimento, quais as consequências de cada um dos procedimentos, possíveis benefícios dos procedimentos e, principalmente, quais os riscos envolvidos em cada um dos procedimentos. Ainda o paciente deve ser informado sobre as consequências e os riscos inerentes a não adoção de procedimentos".1
Tal constatação faz ver que o Código acatou o pensamento mundial que rege a matéria e estabeleceu um verdadeiro e ativo canal de comunicação entre o médico e o paciente. A indagação reiterada constantemente procura saber até onde alcança a autonomia da vontade do paciente. É notório que o médico seja dotado de conhecimento especializado sobre determinada área e sua palavra é de vital importância para o enfrentamento da moléstia apresentada. Pode, às vezes, no entanto, não coincidir com a opinião do paciente, que opta por um determinado procedimento, em razão da liberalidade existente no "Pacient Self-Determination Act" (PSDA).
Vale a pena observar que a capacidade de consentir estabelecida no Direito Civil pátrio teve origem no Direito Médico. Miranda, com sua perspicácia doutrinária insuperável, faz ver: "A noção advém do Direito Médico de diferentes países para marcar a linha de limite entre as intervenções médicas praticadas em vista de um ato de autodeterminação do paciente e aquelas praticadas com a assistência ou mediante representação do legalmente responsável pelo paciente. Seu objeto específico é o processo de tomada de decisões sobre os cuidados para com a saúde, globalmente considerados, abrangendo, portanto, não apenas os casos de autorização para participar de pesquisas na área da saúde, mas quaisquer atos de lícita disposição do próprio corpo".2
O Conselho Federal de Medicina, que por sua vez procura integrar seus conhecimentos científicos e tecnológicos a serviço do paciente, não recomendou taxativamente o uso dos medicamentos solicitados pela paciente, mas deixou a critério do médico a indicação, desde que seja tomada em decisão compartilhada com o paciente. Trata-se de um ato em que o médico divide a responsabilidade com o paciente e ambos assumem a mesma empreitada na ars curandi. O médico pode sim prescrevê-los, porém deve informar ao paciente que o medicamento não goza de eficácia científica comprovada e também a respeito dos efeitos colaterais eventuais, que podem trazer malefícios. Tudo materializado no termo de consentimento informado, peça indispensável para retratar uma decisão conjugada.
A Associação Médica Brasileira (AMB), por sua vez, em recentíssimo documento editado pelo Comitê Extraordinário de Monitoramento Covid-19, em seu item 7, visando orientar os pacientes a respeito de condutas médicas, proclamou: "Reafirmamos que, infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da COVID-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida".3
A autonomia da vontade do paciente não pode, portanto, ultrapassar as barreiras éticas e morais do profissional da saúde. Tal hipótese afigura-se como uma causa de limitação da autonomia da vontade do médico quando o interesse do paciente, mesmo que legítimo, não pode obrigar o profissional da saúde. Trata-se até mesmo de uma justificativa de objeção de consciência. O médico pode se recusar a cumprir determinado preceito legal alegando um imperativo proibitivo de sua consciência, contrariando, desta forma, a volição do paciente. O próprio Código de Ética Médica, no Capítulo que trata dos Direitos dos Médicos, em seu item IX, assim se expressa: "Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência".
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1 Dantas, Eduardo; Coltri, Marcos Vinicius Coltri. Comentários ao Código de ética Médica: Resolução CFM nº1931/2009. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2010, p.106.
2 Miranda, Pontes. Tratado de Direito Privado. Introdução: pessoas físicas e jurídicas, atualizado por Judith Martins-Costa... [et al.] Editora Revista dos Tribunais, 2012 (coleção tratado de direito privado: parte geral; 1) p.251.
3 Circular 02/21 da Associação Médica Brasileira.