Desistência voluntária e arrependimento eficaz
domingo, 28 de fevereiro de 2021
Atualizado em 26 de fevereiro de 2021 10:49
Um ladrão ganhou o interior de uma escola pública em São Paulo e subtraiu para si três televisores, um computador e uma panela de pressão. Antes de deixar o local, no entanto, destacou uma folha de caderno de algum aluno e, caprichosamente, deixou sua justificativa, com os dizeres: "Me desculpe mesmo, de coração, por fazer isso, não tive escolha, foi precisão". Arrematou lançando sua assinatura como "desesperado" e já no final da folha pediu misericórdia a Deus.1
A leitura atenta do bilhete deixado revela a impressão de que a pessoa não queria praticar a subtração, embora tivesse pleno conhecimento de que sua conduta não era socialmente recomendada. Porém, em razão de se encontrar carente de recursos e em situação financeira comprometedora, outra alternativa não lhe restou a não ser levar consigo os bens referidos e transformá-los em dinheiro. Tanto é que no pouco tempo em que se dedicou a justificar o ato recriminado e confessado no bilhete, deu-se por condenado e buscou sua remissão ao pedir clemência a Deus. E pior. Praticou um furto contra uma instituição pública de ensino de bairro sabendo que os bens subtraídos iriam fazer falta para os alunos no dia seguinte.
Pode até ser que o leigo, na rápida leitura da notícia policial, venha a sensibilizar-se com a escusa apresentada. Principalmente pelas palavras aparentemente sinceras contidas no bilhete de arrependimento. Poderá até pensar que o fim justifica os meios e que o ser humano merece crédito e, quem sabe, futuramente, venha a recompor o prejuízo causado à escola pública.
Sua justificativa, no entanto, não encontra amparo legal, por mais que se queira explicar a conduta. É até louvável saber que o furtador recriminou a própria ação. Mas juridicamente - a não ser pela relevância de compor o quadro probatório - a breve confissão escrita de próprio punho e acompanhada de arrependimento não lhe socorre.
Não há que se falar em estado de necessidade ou, segundo o linguajar do agente, em estado de "precisão" como causa elidente da responsabilidade penal. Estado de necessidade é a ação direcionada contra um perigo atual e inevitável, não provocado pela pessoa, porém, para salvar um bem jurídico próprio ou de terceiro, venha a lesar o interesse de outrem. Exemplo clássico é do saudoso professor Damásio E. de Jesus quando se refere aos danos materiais produzidos em propriedade alheia para extinguir um incêndio e salvar pessoas que se encontravam em perigo.
Também não se enquadra na questão a eventual dificuldade financeira pois é totalmente incompatível alegar a pobreza ou a baixa remuneração para justificar a prática de um crime. Nesta linha de pensamento, todas as subtrações seriam satisfatoriamente justificadas pela excludente.
Apesar de o arrependimento estar expresso no bilhete, esteve ausente na conduta do furtador. O arrependimento eficaz previsto na lei penal não se baseia em palavras e sim no exato momento em que a ação está se desenvolvendo. Se o agente, logo após a consumação do furto, mas antes da intervenção da autoridade policial, repõe as rei furtivae ao local de onde as subtraiu, configura-se o arrependimento eficaz, também chamado na doutrina de tentativa perfeita. O que não aconteceu no fato relatado.
A desistência voluntária, assim como o arrependimento eficaz, é uma manifestação de vontade contrária por parte do agente, interrompendo o iter criminis e colocando um ponto final no seu propósito delinquencial. Ocorre a desistência quando o agente, de forma voluntária e espontânea, podendo continuar na empreitada delituosa para atingir a consumação, dela desiste por sua própria decisão. É uma proposta que brota instantaneamente e deixa transparecer, de forma inequívoca, que o furtador desistiu de realizar seu projeto ilícito. O que também não ocorreu no caso comentado.
Poder-se-ia aventar - e para tanto ampliar demasiadamente o espírito da lei - a justificativa do furto famélico. Tal excludente também não coaduna com a ação do furtador que se limitou a subtrair computadores e uma panela de pressão, sem levar gêneros alimentícios para a imediata satisfação da necessidade de saciar a fome própria ou de seus familiares.
Outra solução derradeira seria até mesmo cogitar da aplicação do arrependimento posterior, regra contida no artigo 16 do Código Penal, para efeitos de redução da pena de um a dois terços. Neste caso se exige que o crime não tenha sido praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, circunstâncias presentes na conduta do furtador, além da necessidade da efetiva reparação do dano ou da restituição dos bens até o oferecimento da denúncia, por ato voluntário do agente.
Feitas tais ponderações, a conclusão mais adequada do ponto de vista legal, isento de qualquer consideração pessoal, é que o gatuno praticou sim, de forma consciente e sem qualquer justificativa, o crime de furto. A valoração da conduta humana deve ser feita de uma forma criteriosa levando-se em consideração não só os argumentos de arrependimento e desistência do infrator, que no caso não foram plausíveis, mas, também, a sua resolução determinada para a prática do ilícito, com a plena consciência de estar agindo contra legem. Fato revelador de tal desiderato é que, até o presente, apesar de todas as diligências policiais realizadas, o autor do furto não foi encontrado. Se verdadeiras suas palavras escritas, deveria se apresentar e entregar as coisas subtraídas para receber, pelo menos, o benefício da redução da pena.
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1 Ladrão furta escola pública e deixa bilhete com pedido de desculpas.